Wednesday, 6 September 2023

A Lógica da Crença

Randall Smith
Recentemente ouvi falar de uma mulher que foi a uma aula de preparação para o baptismo mas que, quando lhe disseram que a Igreja ensina que o aborto é errado, saiu subitamente, dizendo: “Nem acredito que a Igreja proíbe o aborto”. Calculo que haja outros ensinamentos, até mais fundamentais, que a chocariam ainda mais. O aborto é apenas a ponta do icebergue, espera só até ouvir falar da ressurreição dos mortos.

Uma reacção possível a esta história seria argumentar que, se a insistência da Igreja em se opor ao aborto afasta as pessoas, talvez seja melhor desvalorizar esse ensinamento, uma vez que já não está de acordo com o “espírito do nosso tempo”. Se eu for gerente de uma loja que vende um certo estilo de roupa, de que já ninguém gosta, então deixo de oferecer esses modelos. No mundo dos negócios oferecemos o que atrai os clientes e evita-se aquilo que os afasta. 

Só que a Igreja não é um negócio. Isso pode parecer ingénuo para alguns, mas deixemos claro que a Igreja, na sua essência, não é um negócio. E que os leigos não são “consumidores” em busca de um produto.

Sim, a Igreja aceita dinheiro porque precisa dele para manter as suas actividades em marcha. Mas olhemos para outra instituição que também aceita dinheiro: a escola. O que pensaríamos de uma escola que dissesse: “os miúdos não gostam de matemática, por isso deixemos de oferecer matemática”? Então talvez devamos admitir que a Igreja tem uma responsabilidade análoga: de ensinar e fazer aquilo que for no melhor interesse dos seus membros, ainda que estes nem sempre “gostem” e até mesmo se com isso ela não seja “popular”.

Mas há algo mais profundo aqui também, porque a oposição da Igreja ao aborto baseia-se na revelação divina e na visão da pessoa revelada em, e através de, Jesus Cristo. Visto desta forma, dizer, “Eu não acredito no que a Igreja ensina sobre o aborto” equivale a dizer “eu não acredito que o ensinamento da Igreja sobre a pessoa se baseia na revelação divina”. Tudo bem, mas essa a definição de um “não católico”.

Se isso vos parecer demasiado radical, então considere-se o caso de alguém que diz uma das seguintes proposições: “Nem acredito que a Igreja ensina que: (a) Jesus foi (é) o Filho de Deus feito carne; e/ou (b) que um Deus feito Homem poderia morrer; e/ou (c) que Jesus ressuscitou corporalmente dos mortos; e/ou (d) que os fiéis, depois de morrerem, também ressuscitarão corporalmente dos mortos. Muitas pessoas ao longo da história não têm sido capazes de aceitar esses ensinamentos, mas a Igreja sempre entendeu que não faria qualquer sentido identificar-se como o “Corpo de Cristo” se deixasse de insistir nelas.

O que é que estas pessoas estariam a dizer se recitassem o credo, no qual todas estas coisas são explicitamente afirmadas? Em vez de dizer “Creio…”, teriam, se fossem coerentes, de dizer: “Algumas pessoas acreditaram em tempos que…”. Dizer, alto, diante de Deus e de um grupo de pessoas, “Creio em x”, quando na verdade não se crê em x, é tudo menos honesto.

O que é preciso que fique claro, então, é que os ensinamentos morais da Igreja se baseiam numa compreensão da pessoa revelada em, através de, a pessoa de Jesus Cristo.

Por isso, se um grupo afirmasse: “gostamos de Cristo, mas acreditamos que o corpo é mau e que só o espírito, libertado do corpo, é que é bom”, como faziam os Maniqueus e outras seitas gnósticas na Igreja primitiva, a Igreja teria de dizer (e disse): “lamento, mas não”.

Mas da mesma forma, se alguém diz: “Eu gosto de Cristo, mas acho que as pessoas podem ter relações sexuais apenas por diversão, porque isso é algo que se faz com o corpo, e o corpo não implica com as nossas intenções nem com a nossa verdadeira identidade”, então a Igreja teria de dizer que não, explicando que a Encarnação nos revela a ligação intrínseca entre o corpo e a alma.

Tal como os cristãos não podem logicamente afirmar: “Eu amo a Deus, mas odeio o meu próximo”, assim também não podem dizer “Eu amo a Deus feito homem, mas odeio a carne”, ou “eu amo a Cristo ressuscitado, mas rejeito a ressurreição dos corpos”. Estas não são apenas doutrinas das quais podem escolher, são afirmações intrinsecamente ligadas à nossa fé em Jesus Cristo, que é o Filho de Deus Encarnado e Senhor Ressuscitado.

Tal como a Igreja não pode simplesmente desvalorizar o seu ensinamento sobre a mentira, apesar de haver muitas pessoas que mentem, ou contra odiar o nosso vizinho, ou contra as relações sexuais descomprometidas, apesar de haver muitas pessoas a fazer ambas essas coisas, assim mesmo a Igreja não pode simplesmente deixar de proclamar qualquer um dos ensinamentos que se baseia na sua compreensão da pessoa, derivada da autorrevelação de Deus em Cristo.

É certo que quanto mais membros de uma cultura se sentirem atraídos por coisas que a Igreja crê serem destrutivas do florescimento autêntico do homem, em vez de acreditarem nas coisas que são conducentes a esse florescimento, mais difícil será convencê-las a serem “católicas”. Assim também, quanto mais nazis convictos existirem numa sociedade, menos católicos sinceros haverá – a não ser que se falsifique o Evangelho para que se possam aceitar. 

Mas ninguém tem nada a ganhar quando a Igreja mente sobre aquilo que ensina, ou sobre as obrigações e proibições que derivam da crença em Jesus Cristo. Se uma mulher quiser matar bebés por nascer mais do que ser católica, tudo o que podemos dizer é: “Lamentamos. Amamos-te. Mas não podemos de forma alguma deixar-te dizer que aceitas a fé católica em Jesus Cristo quando claramente não é o caso. É um princípio básico da não-contradição: não se pode afirmar uma coisa e negá-la ao mesmo tempo. Não fomos nós que inventámos isso, é apenas um princípio básico de lógica. E temos de insistir em manter essa lógica, porque caso contrário as nossas palavras tornam-se disparates sem sentido”.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 5 de Setembro de 2023)

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