Wednesday, 1 March 2023

Recomendações para a Quaresma

Stephen P. White

Estou cheio de vontade de viver esta Quaresma. Quando era miúdo costumava temer o início da Quaresma. O desconforto e a inconveniência de ter de aguentar o miserável sacrifício a que me propunha nesse ano – deixando de comer doces, de ver televisão, ou algo do género – eram uma seca. Quando fiz cinco ou seis anos a Quarta-feira de Cinzas calhou nos meus anos. Terrível.

À medida que me tornei mais velho fui percebendo como as disciplinas da Quaresma podem ser edificantes e construtivas. Como disse recentemente a um amigo, já cheguei ao ponto em que até anseio a chegada da Quaresma. Trata-se de uma oportunidade calendarizada para um reforço espiritual. Dá-nos aquela injecção extra de disciplina e de estrutura que só fazem bem ao corpo.

Os pequenos confortos podem tornar-se dependências. E a Igreja, na sua sabedoria, chama-nos a fazer penitência e jejum, não apenas como forma de fortalecer a nossa vontade interior, mas para nos ajudar a livrar-nos dessas dependências. O jejum, afinal de contas, não é simplesmente uma questão de “abdicar” ou mesmo de “redimir” os nossos pecados. Trata-se de nos libertar da dependência de amores concorrentes ou desordenados para podermos ser livres de amar como devemos. E essa liberdade transforma o nosso jejum e penitência de mera obrigação em oportunidade para partilhar do sofrimento de Cristo, que é a nossa esperança.

Desta perspectiva, o sofrimento não é apenas uma coisa a aguentar, mas está associado à esperança. O Papa Bento XVI escreveu sobre a ligação entre o sofrimento e a esperança na sua encíclica Spe Salvi, onde incluiu uma reflexão sobre a prática de “oferecer” pequenas dificuldades. Não estava a escrever especificamente sobre a Quaresma, mas aplica-se perfeitamente:

“Fazia parte de uma forma de devoção – talvez menos praticada hoje, mas não vai ainda há muito tempo que era bastante difundida – a ideia de poder ‘oferecer’ as pequenas canseiras da vida quotidiana, que nos ferem com frequência como alfinetadas mais ou menos incómodas, dando-lhes assim um sentido. (…) Deste modo, também as mesmas pequenas moléstias do dia-a-dia poderiam adquirir um sentido e contribuir para a economia do bem, do amor entre os homens. Deveríamos talvez interrogar-nos se verdadeiramente isto não poderia voltar a ser uma perspectiva sensata também para nós.”

A Quaresma é uma oportunidade – quer ansiemos por ela ou não – de reavivar esta prática para nós mesmos. Como é evidente, a penitência é apenas uma parte da nossa prática quaresmal. A esmola desapega-nos do dinheiro, que pode ser uma coisa particularmente pegajosa, no sentido espiritual, e abre-nos à caridade e ao cuidado pelos outros. A oração, tal como a esmola e a penitência, não é apenas uma prática para a Quaresma, mas encontrar tempo e formas adicionais para rezar durante a Quaresma ajuda a fortalecer a nossa devoção ao longo do resto do ano.

No que toca à oração, existem duas práticas quaresmais que tenho achado particularmente benéficas. Ambas têm a ver com a Escritura. E embora nem uma, nem outra, sejam particularmente novas, cada uma fornece formas de rezar e reflectir sobre a Palavra de Deus de formas que a nossa vida do dia-a-dia – pelo menos no meu caso – não permitem. Ambos nos obrigam a abrandar, o que na vida de passo acelerado que vivemos actualmente é só por si uma forma muito necessária de penitência.

A primeira das sugestões é mesmo muito simples: leiam os Evangelhos. Não estou a dizer para lerem uma passagem dos Evangelhos de tempos a tempos, ou sequer que reflictam sobre o Evangelho do dia (embora estas sejam coisas óptimas, como é evidente). A minha sugestão é que se sentem a ler cada um dos Evangelhos de fio a pavio. Se tiverem tempo para isso, tentem ler cada um dos Evangelhos de uma assentada. O Evangelho de Marcos é o mais curto, por isso talvez queiram começar por aí, mas também podem lê-los pela ordem, a começar por Mateus.

A maioria dos católicos confrontam-se com a Escritura na Missa. Mas raramente lemos o Evangelho como um todo. A leitura completa dos Evangelhos é uma forma maravilhosa de nos encontrarmos com elas de novo, e uma forma excelente de reparar em novos detalhes. Ajuda-nos a notar repetições subtis e alusões no texto. Permite-nos apreciar o contexto de várias passagens, o que ajuda a compreender o todo, e não apenas as partes.

Mãos à obra!
A relativa proximidade, no tempo e no espaço, de várias parábolas e eventos costuma perder-se numa leitura mais esporádica. E sentar-se durante uma ou duas horas com o Evangelho dá uma oportunidade para mergulhar na Palavra de Deus de uma forma que raramente nos permitimos. Para mim tem sido muitíssimo útil.

A segunda sugestão de prática quaresmal é esta: copiar as Escrituras. Estou a ser literal. Peguem num papel e numa caneta e copiem as palavras da Escritura à mão. Escrevam com boa caligrafia e com propósito. Usem uma caneta, e não papel, porque isso obriga-nos a ter mais cuidado e evitar erros indeléveis. Os salmos são um bom ponto de partida, na maior parte podem ser concluídos antes de ficar com cãibras na mão.

A prática de copiar as Escrituras à mão obriga-nos a concentrar-nos em cada uma das palavras. Obriga-nos a desacelerar, o que é especialmente importante em passagens familiares que podem facilmente passar despercebidas. Reparará que nalgumas partes as palavras não são exactamente como se lembrava, ou o que esperava. Reparará, ainda, em mudanças subtis de escolha de palavras, tom e sentido.

O melhor é que, como está a escrever as palavras e não apenas a lê-las em silêncio ou a ouvi-las a serem lidas alto, é mais fácil fixá-las. Não é por acaso que se costumava ensinar a memorização, em parte, pela escrita repetitiva. Escrever as palavras da Escritura é uma forma muito bonita de a aprender de maneira mais íntima.

Com o começo desta Quaresma, já tenho comigo a minha Bíblia e a minha caneta preferida, pronta a usar. Sei muito bem que o entusiasmo costuma ser forte ao início, mas que depois pode escassear. Ainda assim, estou determinado. Sim, estou com vontade de iniciar esta Quaresma. Tal como acontece todos os anos, é exactamente aquilo de que preciso.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2023)

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