Thursday, 16 March 2023

Conclusões sobre a lista de alegados abusadores

[Post já actualizado depois de Lisboa ter anunciado o afastamento provisório de 4 dos 5 padres na sua lista]
Agora que já temos informação de todas as dioceses sobre as listas que receberam, é tempo de tirar algumas ilações. Os dados propriamente ditos, o mais completos possível, estão aqui.

Menos de cem nomes

Sempre foi dito que seriam mais de 100 nomes, havendo quem falasse de 120. Afinal, somando todos estes casos temos apenas 98. Contudo, pode haver uma explicação para isto. Talvez a Comissão Independente se estivesse a referir a todos os nomes, incluindo os que estão nas listas a entregar ainda às congregações religiosas. A outra hipótese é que o número de “mais de 100” tenha sido dito assim por alto. Afinal de contas 98 é muito próximo de 100. Este não me parece ser um problema extraordinariamente grave, mas se for esta a hipótese é mais uma demonstração de falta de rigor no que diz respeito à lista de abusadores, o que era desnecessário.

37% mortos

Já dediquei um artigo inteiro a explicar porque é que é importante a questão de saber se a lista continha os nomes de mortos ou não, não me vou repetir. Mas fica o registo de que 36 dos nomes na lista dizem respeito a alegados abusadores que já morreram. É, de longe, o maior número de todos os itens.

Isto não deixa de ser boa notícia. Não porque o sofrimento das vítimas seja menor, mas porque é a maior das garantias de que, caso esses homens tenham sido de facto abusadores de menores, já não constituem uma ameaça activa para ninguém.

9 no activo

Este é um número sujeito ainda a muitas mudanças. À medida que as dioceses que pediram mais informação sobre alguns dos nomes nas suas listas a forem recebendo, poderemos ver novos casos de afastamento provisório e abertura de processos canónicos e/ou civis. Na verdade, contudo, apenas se aguarda mais informação relativa a 4 destes nomes, uma vez que o Porto optou por manter quatro dos nove padres nomeados em funções, Lisboa indicou que um dos cinco padres sobre quem tinha pedido mais informação já tinha sido investigado e ilibado e Coimbra já recebeu a informação pedida e concluiu que não se tratava de um caso de abuso de menores. Este último facto será escrutinado um pouco mais abaixo.

Falta de uniformidade

Uma das dificuldades com a lista é a falta de uniformidade com que cada diocese apresentou os seus dados. Por exemplo, algumas dioceses dizem que têm padres na lista que não têm cargo atribuído. Isto pode querer dizer que estão a gravemente doentes e hospitalizados (há um caso assim); pode querer dizer que estão reformados e possivelmente incapazes de participar em qualquer tipo de inquérito; pode querer dizer que foram expulsos do sacerdócio ou que o abandonaram de livre vontade (há pelo menos três casos assim) ou pode querer dizer que o padre em questão já foi ilibado pela justiça civil e canónica, mas ainda não foi nomeado para um novo cargo (também há um caso assim).

No que diz respeito a este último exemplo, algumas dioceses disseram especificamente que os padres nas suas listas tinham sido já alvo de processos. Alguns disseram quais tinham sido os resultados, outros não.

Tudo isto torna difícil sistematizar os dados, mas é mais do que isso. É um exemplo – pequeno, mas real – do que correu pior em todo este processo, que foi a variedade de estilos e ritmos de resposta dos bispos e das dioceses. Eu sei que cada diocese é independente e que zelam muito por isso, mas teria feito sentido, num tema destes centralizarem as respostas e falarem a uma só voz.

E agora? A transparência continua?

Não está tudo feito (e estou a referir-me só à lista, nem estou a falar de tudo o resto que falta fazer). Neste momento ainda temos 4 casos de padres sobre quem foi pedida mais informação, mais dois casos que foram enviados para a diocese errada e ainda os casos dos padres desconhecidos que poderão eventualmente ser identificados com mais dados fornecidos pela Comissão. Agora que a atenção mediática vai começar a diminuir, será que as dioceses vão continuar com a política da transparência e manter a comunidade informada sobre os desenvolvimentos em relação a esses casos? Era muito importante que isso acontecesse.

E nesse sentido, sublinha-se que algumas das dioceses aproveitaram os seus comunicados para informar que alguns dos casos já tinham sido tratados processualmente, embora essa informação nunca tivesse sido pública. Claro que é bom que assim seja, mas porque é que isso não tinha sido tornado público antes?

Pode-se argumentar que a população em geral não tem nada que saber se um padre é acusado formalmente de um crime de abuso sexual ou não, que o que interessa é que a coisa seja tratada. Mas na Igreja os maiores prejuízos que têm sido causados por este escândalo não são só a existência de predadores, que sempre os haverá em qualquer sector da sociedade, mas sobretudo os encobrimentos. Ora, é muito mais fácil um bispo cair na tentação de encobrir um caso se não existir uma cultura de transparência total.

Recentemente, algumas dioceses já adoptaram a prática de fazer comunicados quando um padre é alvo de uma acusação credível de abuso sexual, e nalguns casos divulgam mesmo o seu nome. Esta última questão é discutível, mas eu acho que é boa política, pois sendo muito duro para o padre, que pode vir a ser ilibado, não dizer o nome coloca todo o resto do clero sob suspeita.

O que se passou em Coimbra?

Um dos casos mais curiosos foi o que se passou com a lista entregue a Coimbra. Sem quaisquer informações sobre um dos padres na sua lista, a diocese pediu mais dados à Comissão, que prontamente os enviou. Na sequência, a diocese disse que tendo em conta esses dados tinha-se concluído que a situação não enquadrava qualquer tipo de abuso sexual, nem de menores, nem de outra espécie. Como é que isto acontece?

Uma possibilidade – e isto é uma suposição minha – é que seja um caso parecido com o que surge na página 236 do relatório, embora dificilmente seja especificamente o mesmo caso, por causa das datas:

Nascido na década de 30, M preencheu o inquérito online com a ajuda de um neto. Conta que, com 14 anos, foi uma vez confessar-se, numa igreja importante de uma cidade do Norte e o padre lhe fez perguntas «impróprias e sexuais. Disse: "já namoras? Já puseste as mãos nas maminhas da tua namorada? e nas coxinhas?" (…) Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja.» Contou aos pais que lhe pediram «para não falar».   

Eu percebo que um caso destes esteja no relatório, se a pessoa ficou incomodada com o estilo da confissão, fez bem em falar do assunto, até porque já vimos que muitos dos abusos foram de facto insinuações e frases ditas nesse ambiente. Mas dificilmente este caso em particular configura uma situação de abuso sexual de menor.

Pode ter sido isto? Não sei, mas tendo a Comissão validado este testemunho, caso o nome do padre tenha sido divulgado, então deve estar na lista. Se não na de Coimbra, uma vez que não sabemos a diocese, então noutra qualquer.

[Nota: Depois de ter publicado isto recebi alguns comentários e telefonemas a alertar-me para ter cuidado, porque este tipo de conversa pode de facto constituir abuso. Agradeço e aceito que não deveria ter escrito "dificilmente este caso em particular configura uma situação de abuso sexual de menor". Não vou apagar por uma questão de transparência, e porque acho que vale a pena alertar para o facto de este ser um assunto que cai mesmo naquela fronteira cinzenta da questão e acredito que possa haver casos - não estou a falar deste em particular, mas no geral - em que as perguntas sejam inocentes mas não sejam entendidas assim pelo penitente.]

Padres afastados

Por fim, a célebre questão dos padres afastados preventivamente do ministério enquanto os seus processos são investigados. Tem havido muitas críticas às listas e à forma como tudo se passou, mas por causa delas pelo menos 13 padres já foram afastados e isso é importante. Não estou aqui a contar com o padre de Viseu que já estava suspenso antes de ter sido nomeado na lista. Este número está sujeito a aumentar, uma vez que há 4 padres sobre quem se espera mais informação e quando essa informação chegar eles também poderão ser afastados preventivamente, bastando para isso que haja credibilidade na acusação, o que não implica qualquer assunção automática de culpa. Este é o grande fruto desta lista e não pode ser negligenciado. Frases como “a montanha pariu um rato” não ajudam ninguém nesta fase. Sim, falou-se em 100; sim, isso gerou um ruído desnecessário, mas isso está no passado.

Agora estes casos serão investigados e se tudo correr bem será feita justiça, passe isso por uma condenação e eventual pena, ou por arquivamento ou ilibação. Essa justiça é que é importante, mais do que guerras de números.

Conclusão: Uma Igreja segura e insegura

O objectivo final de todo este processo é garantir que a Igreja seja simultaneamente mais e menos segura.

Mais segura para crianças e adultos vulneráveis, como é evidente. Segura não só no sentido de ser muito menos provável alguém passar por uma situação de abusos – impossível nunca será – mas também no sentido de saberem que há mecanismos e processos que funcionam caso façam uma denúncia.

Ao mesmo tempo é importante – e este ponto depende do anterior – que nenhum predador sinta que possa seguir uma vida na Igreja porque assim terá caminho facilitado para poder cometer abusos. Isto é crucial. Trabalhar a montante, evitando a ordenação ou contratação de pessoas que revelem comportamentos desviantes, falta de maturidade sexual ou outras características que certamente os psiquiatras conseguirão identificar melhor que eu, é das maiores reformas que a Igreja deve empreender ou, onde já é feito, aprofundar e dar continuidade. De resto, muita atenção, sem tornar a Igreja um estado policial, para ter a certeza que qualquer comportamento suspeito não é ignorado.

É assim que se tem feito noutros países que já levam umas décadas de avanço, é assim que se deve fazer aqui também. Deus dê força aos nossos bispos para continuarem o bom trabalho que já existe, e fazer o que falta fazer.

1 comment:

  1. Surpreendentemente havia a lista dos 407 clérigos, leigos, desconhecidos, distribuídos por diocese e congregação, masculina e feminina. Esta lista articulada com os arquivos e as comissões diocesanas. É a lista resultante do relatório da CI. Estava surpreendentemente feita! E que foi feita dela?! Fizeram outra, mas com que critério. E agora andam a pedir a lista e a consultar arquivos. Isto não bate nada certo! Pergunte Filipe se os nomes dos 407 e os testemunhos que os referenciaram estão corretos.

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