Friday, 15 July 2022

A crise no SNS - Outra visão

No seguimento do último episódio do Hospital de Campanha, sobre a crise no SNS, recebemos este comentário muito interessante de uma amiga que é médica, especializada em oncologia e paliativos, e que trabalha num hospital em Trás-os-Montes. Discordando de algumas das coisas que disse o nosso convidado, José Diogo Ferreira Martins, na verdade o comentário da Teresa acaba por complementar muitas das coisas que ele disse e parece-me demasiado importante para ficar apenas na secção dos comentários, pelo que o publico aqui na íntegra, tendo feito apenas um pouco de edição, corrigindo gralhas e eliminando emojis, por uma questão de objecção de consciência.


Mais uma vez ouvi o vosso podcast e gostei muito.

Não concordo com todas as opiniões do colega, mas admiro a fantástica capacidade de manter a humanidade e continuar a acreditar na verdadeira essência do que é ser médico!

Contudo, gostava que parassem de dizer que a crise do SNS vem da fuga dos médicos para o privado! Não é verdade!

A crise do SNS vem do subfinanciamento brutal e da total centralização de todas as decisões!

Nós até não nos importávamos de trabalhar a receber pouco se pudéssemos trabalhar com qualidade e desenvolver projetos que fizessem a diferença para o doente.

A maioria de nós continua a acreditar na beleza e utilidade do sistema público, mas é muito difícil trabalhar com a equipa que é volátil, pois depende de um concurso central.

Pior ainda é ter doentes graves à espera durante meses de um exame porque o aparelho está avariado e o concurso para a sua manutenção caducou.... Doentes com cirurgias adiadas sucessivamente por falta de material... Pedir por favor (como se fosse para a nossa mãe) ao colega que veja em extra um doente urgente e grave... Sim, porque as cunhas não tiram o lugar a outro, pelo menos na minha consulta, acrescentam um doente extra à lista, e tiram-me a hora de ir buscar os meninos à escola!

Cansa trabalhar em gabinetes sem mínimas condições, ter de levar de casa luvas e máscaras (como aconteceu!) ou andar a abanar os tinteiros da impressora para poder imprimir uma receita ou outros milhares de burocracias a que nos obrigam.

Esta narrativa da fuga para o privado tem também alguma demagogia. Por exemplo, este ano acabaram a especialidade de ginecologia e obstetrícia cerca de 20 médicos. O Estado abriu um concurso com mais ou menos 40 vagas. Como é evidente, apenas metade foi preenchida, pois só existiam no país cerca de 20 médicos em condições de concorrer! Como é que isto chega à imprensa? “Apenas metade das vagas para GO no SNS forma ocupadas. Médicos fogem do SNS”

Sobre a Covid, foi extremamente doloroso trabalhar durante estes dois anos, em especial na área em que trabalho, de oncologia e paliativos. Fizemos tudo o possível para combater a solidão e o isolamento, mas deu vontade de chorar todos os dias! Terríveis as enfermarias de "covid paliativos" onde estavam doentes Covid que toda a gente sabia que iam morrer, mas onde não se podia ceder um milímetro nos procedimentos e equipamentos de protecção individual. Ainda agora mantemos regras estúpidas, mas na realidade recuámos 20 anos em termos de humanização hospitalar e vamos demorar a recuperar.

Uma nota quanto à assistência espiritual: de louvar o trabalho de alguns capelães fantásticos que tudo fizeram para se fazer presentes, apesar das limitações, muitas vezes a ter de desafiar as autoridades. Mas o atendimento das necessidades espirituais dos doentes (crentes ou não crentes) é essencial e é das áreas mais negligenciadas! Não é da responsabilidade apenas dos capelães ou famílias, mas dos profissionais, numa perspectiva de ir ao encontro daquilo que dá sentido à vida e é a espiritualidade particular de cada doente. Esta lacuna é uma das maiores causas de sofrimento no final de vida.

Como diz Cassel: "os corpos doem, as pessoas sofrem", e nós medicamos a dor e abandonamos o doente ao seu sofrimento.

Mas isso dava para mais uma longa conversa.



1 comment:

  1. A realidade! Vista pelos olhos de quem lá está ...

    ReplyDelete