Wednesday, 1 June 2022

Bem-aventurados os que choram

Randall Smith

“Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados” (Mt. 5,4). No comentário às bem-aventuranças, no livro “Jesus de Nazaré”, o Papa Bento XVI refere que existem dois tipos de tristeza: “Uma que perdeu a esperança, que deixou de confiar no amor e na verdade e, consequentemente, insidia e destrói o homem por dentro; mas há também a tristeza que deriva da comoção provocada pela verdade e leva o homem à conversão, à resistência contra o mal. Esta tristeza cura, porque ensina o homem a esperar e a amar de novo”.

Falando sobre as mulheres aos pés da Cruz, o Papa escreve que “num cenário cheio de crueldade e cinismo ou de conivência gerada pelo medo, permanecem fiéis”. Elas não têm o poder de mudar a situação geral, ou prevenir o desastre, mas ao recusar deixar os seus corações endurecerem-se perante a dor de outro, “estando com” e “sofrendo com” o inocente que foi injustamente condenado, elas colocam-se do seu lado, ao seu lado. Através da sua paixão – no sentido etimológico de partilhar da Sua paixão – e através da sua recusa de virarem as costas ou de deixarem que a revolta, o medo ou a vingança endureçam os seus corações, abriram-se ao amor do Deus que é amor.

Que mais poderiam elas fazer? Fugir, com medo, como os outros discípulos? Sair com armas e matar todos os que achincalhavam Cristo? Interromper uma conferência de imprensa para se queixarem das autoridades judaicas e romanas? Alguma dessas coisas teria ajudado a dar continuidade ao Reino que o Senhor veio estabelecer? Ou teria simplesmente tornado tudo incomensuravelmente pior?

Facilmente imaginamos a reacção de um transeunte: “Por amor de Deus, mulheres, parem de chorar e façam alguma coisa! Peguem numa espada, cortem uma orelha a alguém! Vinguem-se do Sinédrio e do governo romano corrupto”. E que mais é que estas mulheres poderiam responder para além de: “Por amor de Deus, não. Lamentamos, mas está muito enganado”.

“A tristeza de que o Senhor fala é o não-conformismo com o mal, é um modo de opor-se àquilo que todos fazem e que se impõe ao indivíduo como modelo de comportamento. O mundo não suporta este tipo de resistência, exige que se participe. Esta tristeza parece-lhe uma denúncia que se opõe ao aturdimento das consciências”.

Recentemente uma amiga enviou-me um link para um artigo de Elizabeth Bruenig chamado “Uma cultura que mata as suas crianças não tem futuro”. Na sua mensagem a minha amiga comentou “tem piada, pensava que isto ia ser sobre o aborto”. Não era. Não podemos chorar as crianças abortadas. O mundo exige conformismo e chorar essas crianças seria considerado uma acusação contra consciências que se tornaram aturdidas.

Assim, um editorial publicado nesse mesmo dia no L.A. Times tinha como título: “A Califórnia deve tornar-se um porto de abrigo para abortos? Não pode não fazê-lo”. Uma cultura que se tornou tão confortável com a ideia de matar crianças não deve sentir-se tão chocada quando descobre que outras pessoas estão a matar crianças.

No seu artigo, a senhora Bruenig fala várias vezes de uma “cultura de morte”. Ecos do Papa São João Paulo II! Mas no seu caso este termo não se referia aos milhões de bebés abortados todos os anos, ou sequer aos milhares de jovens dos guetos que morrem anualmente em violência relacionada com gangues. Falou também de “declínio moral”, mas para ela isso significa o aumento do número de pessoas que possuem armas.

Memorial para as vítimas do massacre de Uvalde
Eu não gosto de armas. Mas as estatísticas citadas por pessoas como David Frum, no seu artigo “A América tem Sangue nas Mãos” sugerem que estou em minoria. “Os Estados Unidos têm posto mais e mais armas em mais e mais mãos, 120 armas por cada 100 pessoas neste país”, escreve Frum. É uma construção estranha: “pôr mais armas em mais mãos”? Foi alguém que as pôs lá?

Eu poderia dizer: “A América pôs mais material pornográfico em mais mãos este ano do que nunca!” Mas aí alguém poderia referir que esse material foi adquirido. Parece que existe mesmo um mercado para isso. Posso não gostar (e não gosto), mas como há tantas pessoas dispostas a pagar, calculo que elas gostem. Presumo, por isso, que se isto fosse a votos eu perderia – a não ser que antes conseguisse converter as suas mentes e os seus corações.

Eu acho as minhas convicções fantásticas. Por isso é que as tenho. Mas às vezes há quem discorde. Aprendi, ao longo dos anos, que isto não significa que essas pessoas sejam necessariamente más ou estúpidas. Simplesmente discordamos. É importante saber discordar sem ser desagradável, sem ódio e sem recriminação.

A autora do tal artigo sobre uma cultura que mata as suas crianças, em contraste, escreve isto: “Depois há algumas pessoas que dizem que todas as coisas terríveis – incluindo esta coisa insuportável que nenhuma civilização deveria ter de aguentar, esta lotaria assassina e demoníaca de alunos – deve simplesmente continuar. E essas pessoas estão a ganhar.” Fiquei a pensar: quem são essas pessoas? Quem é que diz que “todas as coisas terríveis devem continuar”? Não devo ter apanhado essas entrevistas.

Este tipo de comentário ajuda? Irá trazer a paz que nós – todos nós, à sua maneira – tão desesperadamente deseja?

Tanta revolta, tanto ódio, tanta desconfiança, tanta vilificação desnecessária: talvez seja por isso que tantas pessoas compram armas. Pessoalmente, preferia que não o fizessem, mas as suas escolhas livres não dependem de mim.

Então, talvez haja momentos em que temos simplesmente que parar e chorar: sofrer com os outros, não virar as costas, nem apontar dedos de recriminação e culpa para anestesiar o sofrimento, mas simplesmente sentarmo-nos juntos e chorar. Não faltará tempo para voltarmos a arrancar olhos uns aos outros, amanhã, na próxima semana, ou no próximo mês.

“Quem não endurece o coração perante o sofrimento e a necessidade do outro, quem não abre a alma ao mal, mas sofre sob a sua pressão dando assim razão à verdade, a Deus, esse escancara a janela do mundo para fazer entrar a luz”. (Bento XVI).


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 31 de Maio de 2022)

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