Wednesday, 6 April 2022

Esperança e Morte

A semana passada marcou o quinto aniversário da morte do meu pai. Tinha apenas 60 anos quando morreu. Morreu durante a Quaresma, o que nunca deixará de me parecer adequado. A Quaresma é uma boa altura para nos recordarmos, por mais doloroso que seja, de como a vida é fugaz. Também é uma boa altura para contemplar a forma como a fragilidade humana é transformada pelos eventos gloriosos para os quais este tempo quaresmal nos prepara.

Para um filho que perdeu o pai é fácil desejar que as coisas não fossem como são. É tentador deter-nos nas inumeráveis possibilidades do que poderia ter sido – netos que ficaram por conhecer, músicas por cantar, alegrias por partilhar. Mas deixarmo-nos levar por essa tristeza – e admito que há uma certa doçura em fazê-lo – apenas disfarça a belíssima gratuidade da vida, por mais breve que seja. O facto de tudo não ser como eu gostaria é um pequeníssimo preço a pagar por ter existido de todo.

A Quaresma é um tempo de preparação, de olhar para o futuro. De certa forma a Quaresma é-me mais cara desde que o meu pai morreu. A esperança da Páscoa é a esperança do que há de vir, a esperança da restauração, da ressurreição. Mas a esperança não é só para o futuro. A esperança muda o espectro de como podemos sofrer, daquilo pelo qual estamos dispostos a sofrer. A esperança permite-nos, como São Paulo, contar tudo o que seja o aqui e agora como perda. A esperança liberta-nos. 

Há um episódio da grande série da HBO sobre a II Guerra Mundial, “Band of Brothers”, sobre o qual penso com frequência e que ilustra esta questão. O cabo Albert Blithe salta de paraquedas para a Normandia na véspera do Dia-D. No caos que se segue, separa-se do seu pelotão. Mas em vez de partir em busca dos seus camaradas, Blithe esconde-se numa valeta, por baixo de uma sebe, com medo. Tal é o pânico, que sofre de “cegueira histérica”. Ou seja, teve tanto medo que ficou literalmente sem ver.

Blithe acaba por recuperar a visão e reagrupa-se com os seus camaradas, mas está assombrado por o que considera ser a sua cobardia – um sentimento reforçado pelos actos de bravura que testemunha à sua volta. Certa noite, na linha da frente, Blithe encontra o Tenente Speirs, um homem com uma reputação de brutalidade sanguinária. Blithe decide confessar a sua cobardia a Speirs e a resposta que este lhe dá, sobre o medo face à morte, ficou na minha memória.

Speirs: Sabes porque é que te escondeste nessa valeta, Blithe?

Blithe: Estava com medo…

Speirs: Todos temos medo. Tu escondeste-te naquela valeta porque achas que ainda há esperança. Mas, Blithe, a única esperança que tens está em aceitar o facto de já estares morto. E quanto mais depressa o aceitares, mais depressa conseguirás agir como um soldado deve agir, sem misericórdia, sem compaixão, sem remorsos. Toda a guerra depende disso.

Esta visão de Speirs é obscura e pagã. Mas se a sua visão é pagã também possui um certo realismo. A falsa esperança da autopreservação, a falsa esperança de que podemos adiar indefinidamente a morte, leva apenas a paralisia e medo ofuscantes (literalmente, no caso de Blithe). Se a morte significa o aniquilamento e o esquecimento, então a única opção que temos perante a morte é a aceitação. Esta realização livra-nos da cegueira da falsa esperança e permite-nos ver com mais claridade a tarefa que temos pela frente.

E São Paulo, que sabe uma coisa ou duas sobre cegueira, concorda! “Se é somente para esta vida que temos esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os desgraçados”. Speirs aconselha Blithe a abandonar a esperança para poder ver claramente a difícil tarefa que tem de desempenhar. Tal como Speirs, também Paulo sabe que a sua vida está perdida. Mas uma vez que ele vê pelos olhos da fé – “Fui crucificado com Cristo, porém já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” – a visão de Paulo estende-se não só para o que fica deste lado da morte, mas através dela e mais além.

Como o Papa Bento XVI escreveu na Spe Salvi, “o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.”

Acrescente-se a esperança Cristã, nascida da fé, à inevitabilidade da morte e toda a experiência humana se altera. A esperança cristã não previne a morte. A esperança cristã não atrasa sequer a morte. Mas uma vez que a esperança cristã é a esperança na vida eterna, altera completamente a forma como vivemos o aqui e o agora. A nossa esperança por aquilo que virá liberta-nos da necessidade de nos agarrarmos demais à vida. A esperança permite-nos viver a nossa vida generosamente e sem medo. A esperança liberta-nos para enfrentar a Cruz e abraçá-la.

Este é o coração da Boa Nova: A esperança, nascida da fé, liberta-nos para o amor. Aquele que tenta salvar a sua própria vida – para preservar aquilo que no final de contas não pode ser preservado – perdê-la-á. Quem perder a sua vida por amor – aquele que sabe que já morreu em Cristo, e para quem tudo o resto é perda – é quem receberá a vida eterna.

A nossa esperança não está em prevenir ou evitar a morte, mas em aceitar o facto de já termos morrido em Cristo. Quanto mais cedo aceitarmos isso, mais depressa poderemos viver como um cristão deve viver: cheios de misericórdia, cheios de compaixão, e cheios de esperança.

A Quaresma é um tempo em que devemos praticar a morte: morrer para nós mesmos de formas pequenas e grandes. Para o mundo isto é mera cegueira. Mas as muitas mortes da Quaresma são uma lembrança da nossa esperança que nos liberta para viver a Páscoa… E tudo o que fica adiante.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na terça-feira, 29 de Março de 2022)


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