Thursday, 21 April 2022

A posição de Francisco sobre a Ucrânia, e a posição da Ucrânia sobre Francisco

Nos últimos dias têm surgido alguns sinais de desagrado da parte de figuras religiosas ucranianas, nomeadamente da Igreja Católica, em relação ao Papa Francisco e ao Vaticano.

Há duas grandes razões para esse desagrado:

   1. O facto de Francisco continuar a insistir em manter os planos para se encontrar com o Patriarca Cirilo, de Moscovo, apesar de este teimar em manter a ligação a Vladimir Putin, de falar da guerra na Ucrânia como se tratasse de uma guerra santa e benzer as forças armadas que partem para a Ucrânia para matar ucranianos e ocupar o seu país.

2.   O facto de o Vaticano ter planeado colocar duas famílias – uma russa e uma ucraniana – a carregar juntas a cruz na décima terceira estação da Via Sacra na Sexta-feira Santa.

Acresce que alguns lamentam o facto de Francisco nunca ter referido pelo nome Vladimir Putin, nem a Rússia, nas suas condenações da guerra.

Alguns destes protestos são compreensíveis, outros nem tanto. Mas o que não é aceitável é concluir que Francisco tem uma posição dúbia sobre esta guerra, nem sobre quem é culpado pela tragédia que se está a desenrolar na Ucrânia.

Aqui no blog tenho juntado todas as declarações dos principais líderes religiosos relevantes sobre esta guerra, desde o seu início. Pelas minhas contas, para além do líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que divulga todos os dias uma mensagem de vídeo sobre a situação, e do líder da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, o Papa Francisco é o que mais se tem expressado sobre o conflito. Eu conto 17 pronunciamentos públicos, para além de quatro gestos significativos: a ida em pessoa à embaixada da Rússia na Santa Sé, o telefonema a Zelensky, o telefonema ao líder da Igreja Greco-Católica e a conversa por videoconferência com o Patriarca de Moscovo.

Mas mais importante que a quantidade é mesmo o conteúdo das declarações do Papa.

·       Francisco começou logo por dizer, no dia 6 de Março, que esta é uma guerra, desmentindo assim linha oficial de Moscovo de que se trata de uma “operação militar especial”.

·      Antes, a 27 de Fevereiro, quarto dia da guerra, referiu-se ao “povo sofredor da Ucrânia” e disse estar de “coração partido” com o que se está a passar.

·   No já referido dia 6 anunciou ainda o envio de dois cardeais para a Ucrânia, em sua representação.

·       No dia 13 de Março pediu que se pusesse fim ao “massacre” de Mariupol e referiu a “barbárie” da matança de crianças. Nesse mesmo dia publicou uma oração especial pelo fim da guerra na Ucrânia em que identifica Cristo com os bebés que nascem debaixo de bombas em Kiev e com as crianças que morrem nos braços das suas mães em Kharkiv, pedindo a Deus que “trave a mão de Caim”, que aqui é claramente identificado com a Rússia.

·     No dia 15 de Março classificou o ataque à Ucrânia como um “abuso perverso do poder e dos interesses partidários”.

·     No dia 20 de Março referiu-se à guerra como uma “agressão violenta contra a Ucrânia” e um “massacre sem sentido”, falando de matanças e atrocidades. Disse ainda que a guerra é desumana e foi mais longe, apelidando-a de “sacrilégio”, no que pode ser entendido com uma resposta aos que a consideraram uma guerra santa.

·     No dia 2 de Abril, em Malta, disse: “Mais uma vez alguma potência, tristemente apanhada em reivindicações anacrónicas de interesse nacional, está a provocar e fomentar conflito”. No mesmo discurso classificou a pretensão russa de invadir a Ucrânia de “infantil” e disse que “essa criancice, infelizmente, não desapareceu. Reemergiu com força nas seduções da autocracia, novas formas de imperialismo, agressividade em larga escala”.

·      No dia 3 de Abril, ainda em Malta, falou na “guerra injusta e selvagem” na Ucrânia e mais tarde, nesse mesmo dia, voltou a dizer que esta guerra, em particular, é um “sacrilégio”.

·     No dia 6 de Abril referiu-se ao massacre em Bucha, um massacre que os russos dizem que nunca aconteceu, e exibiu publicamente uma bandeira da Ucrânia vinda precisamente dessa cidade.

·     No dia 10 de Abril referiu-se aos “odiosos massacres e cruéis atrocidades levadas a cabo contra civis indefesos”.

·      No sermão de Domingo de Ramos, também no dia 10 de Abril, disse que na guerra Cristo volta a ser crucificado.

·      No dia 13 de Abril disse que esta guerra “é um ultraje contra Deus, uma traição blasfema da Ceia do Senhor, uma preferência pelo falso Deus deste mundo”.

·      E finalmente, na bênção Urbi et Orbi, no dia 17 de Abril, Domingo de Páscoa, disse guardar no coração as muitas vítimas ucranianas, descrevendo-as em detalhe.

A tudo isto acresce o envio dos dois cardeais à Ucrânia, e tudo o que eles têm dito e feito para expressar o horror perante a tragédia e a solidariedade para com a Ucrânia, com o cardeal Krajewski a dizer que tal como Cristo, a Ucrânia ressuscitará.

Portanto não, o Papa não se referiu diretamente a Putin, nem invocou o nome da Rússia, mas é preciso uma enorme dose de má vontade para interpretar as suas muitas palavras e gestos desde que esta guerra começou como qualquer coisa que não seja uma duríssima condenação da Rússia e do regime russo, como responsáveis por esta guerra e tudo o que ela espoletou.

Arrumada esta questão, analisemos então as principais queixas dos ucranianos em relação a Francisco.

A insistência do Papa em encontrar-se com Cirilo é de facto complicada de compreender. Cirilo é a figura religiosa que saiu mais desacreditada em todo este conflito. Incapaz de sair debaixo da asa de Vladimir Putin, incapaz de perceber que esta estratégia é um enorme tiro no pé naquilo que ele considera serem os seus principais objectivos estratégicos, nomeadamente manter os ortodoxos ucranianos debaixo da autoridade de Moscovo e, também, de se afirmar como o principal líder na comunhão ortodoxa, remetendo o Patriarca de Constantinopla para segundo lugar, se tanto.

Depois deste terrível fiasco, muito dificilmente Cirilo será levado a sério pelo mundo, incluindo o mundo religioso. Nesse sentido, um encontro com o Papa é tudo o que ele pode desejar para tentar projectar alguma credibilidade. Com tudo o que se tem passado, porque é que o Papa insiste em dar-lhe esta “borla”?

Não posso fingir saber o que se passa na Santa Sé nem no coração do Papa, mas posso especular que o Papa sabe que por mais que Cirilo esteja na lama, neste momento, não deixa de ser o líder da maior Igreja Ortodoxa do mundo, e que o diálogo ecuménico com o mundo ortodoxo nunca irá a lado nenhum sem a Rússia a bordo. Se as outras igrejas ortodoxas estão dispostas a entrar no mesmo barco que Cirilo ou não, é outra questão, interna, mas o Vaticano não pode simplesmente cortar os laços.

Por outro lado, Cirilo sabe que o Papa poderia perfeitamente não fazer isto, sacudir as mãos dele, como muitos fizeram, e por isso é possível que ele se revele agradecido a Francisco pelo gesto de o manter à tona de água, e que isso dê frutos ecuménicos no futuro.

Finalmente, por mais tentador que seja analisar tudo isto pela perspectiva do poder, devemos lembrar-nos que a lógica do Cristianismo não é a do poder e que o Papa sabe isso.

Chegamos assim ao segundo ponto que causou atrito nos últimos dias. A decisão do Vaticano de ter duas famílias, uma russa e outra ucraniana a escrever em conjunto uma das meditações da Via Sacra caiu muito mal na Ucrânia. E não foi só entre ortodoxos, mesmo o Arcebispo-maior Sviatoslav Shevchuk, da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, condenou a iniciativa, sugerindo que ela passava a imagem de que o sofrimento dos dois povos era equivalente.

Perante a pressão, o Vaticano cedeu e mudou a meditação, que foi substituída apenas por um apelo à oração silenciosa pela paz, enquanto duas jovens mulheres, uma russa e uma ucraniana, seguravam na cruz.

Mesmo essa versão mais “light” não foi aceite pelos ucranianos, e pela primeira vez em anos os meios de comunicação católicos do país não transmitiram a cerimónia em directo.

Esta reacção dos ucranianos apenas se compreende no contexto da enorme injustiça a que estão a ser sujeitados. Mas compreender não é dar-lhes razão. Pelo contrário, diria que imagens de russos e ucranianos lado-a-lado, a condenar a guerra, são exactamente o que faz falta neste momento. Houvesse mais!

É importante não confundir o regime de Putin com o povo russo e é importante não esquecer que quando esta guerra acabar há dois países enormes e dois povos numerosos e antigos que precisarão de encontrar forma de sarar as feridas e viver em conjunto. Qualquer gesto nesse sentido parece-me ser de louvar em vez de criticar.

Infelizmente estas críticas ucranianas não são novas. Na recente conferência em que participei, organizada pela Capela do Rato, o padre da Igreja Ortodoxa Moldava, que está ligada a Moscovo, disse que tinha tentado ir com padres da Igreja Ortodoxa Russa em Portugal prestar apoio aos refugiados ucranianos que chegaram a Cascais, mas foram impedidos de o fazer por ordem da Embaixada da Ucrânia em Portugal. Convém esclarecer que o padre Petru tem falado abertamente contra a guerra e até – de forma corajosa – contra a liderança da Igreja Ortodoxa Russa, e ainda que os três padres russos em Portugal neste momento são signatários da Carta dos Padres Russos pela Paz, que é dos documentos mais bonitos que já li – do ponto de vista cristão – contra esta guerra. Mantê-los longe de refugiados porque são da “confissão errada” foi uma decisão cruel e injusta.

Esta insistência em ver a realidade de uma perspectiva nacional/étnica é, infelizmente, uma das fraquezas inerentes ao Cristianismo oriental. Mas Roma, por mais que simpatize com a Ucrânia e esteja convencida da razão da sua causa, não pode partilhar dessa visão reduzida.

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