Wednesday, 9 March 2022

Todos pela Ucrânia, mas até quando?

Randall Smith

O mundo está horrorizado pelo ataque não provocado da Rússia à Ucrânia e ao seu povo. Não tenho nada de especialmente novo ou sábio para acrescentar sobre a Rússia, a Ucrânia ou a guerra. Por isso, se me permitem, prefiro dizer umas palavras sobre a nossa reacção à crise.

Há vários anos houve um terramoto terrível no Haiti. Todos os dias, quando eu ia à missa, o padre rezava durante a oração dos fiéis pelas pessoas do Haiti. Várias semanas mais tarde, porém, quando o Haiti deixou de figurar na primeira página do “New York Times”, já não estávamos a rezar “pelo povo do Haiti”. Lembro-me de dizer a mim próprio: “Não me parece que esteja tudo bem agora no Haiti. De facto, acho que as coisas estão bastante terríveis”. Então porque é que deixámos de falar do povo do Haiti?

Há muitas razões pelas quais não é boa ideia basear as orações na missa no que encontramos nas manchetes do dia, uma das quais é a natureza efémera e transitória do ciclo noticioso moderno.

Esta é uma razão pela qual eu prefiro a prática dos ritos orientais de percorrer uma longa lista de orações intercessórias por uma série de coisas: agricultores, líderes políticos, operários, famílias, desempregados, prisioneiros, perseguidos, e por aí fora, em todas as celebrações – orações que não estão dependentes do ciclo noticioso.

Neste momento muitos de nós estamos a rezar pela Ucrânia e pelo povo ucraniano. E é assim que devia ser. Mas temo que a situação na Ucrânia não melhore tão depressa. O cenário mais provável, temo, é que Putin consiga sujeitar a Ucrânia à sua tirania. Se isso acontecer os jornalistas serão expulsos do país e as imagens grotescas que agora estamos a ver deixarão de surgir – tal como nunca aparecem da China ou do Irão. As notícias sobre a Ucrânia desaparecerão das primeiras páginas do “New York Times” e de outros dos principais jornais. Então ainda veremos alguém a rezar pela Ucrânia? Ou será que as orações cessam quando a Ucrânia deixar de ser “notícia”?

Neste momento as nossas emoções estão ao rubro. Mas este combate não vai acabar tão depressa para o povo ucraniano. Mesmo que eles saiam desta invasão com a sua soberania intacta, a reconstrução levará décadas. As pessoas gritam: “Ucrânia, estamos convosco!”. Ainda bem. Mas por quanto tempo? Duas semanas? Enquanto nos souber bem? A nossa tendência para a superficialidade deve-nos fazer pensar.

Conheço um professor universitário que tinha um póster na porta do seu gabinete com a famosa fotografia do chinês que, durante os protestos de Tiananmen, em 1989, se posicionou diante de uma coluna de carros de combate – ficou conhecido como o “Tank Man”. Lembro-me que na altura as pessoas diziam que tudo iria ser diferente, que o Governo comunista chinês seria obrigado a mudar, que tinha os dias contados, tal como dizem agora sobre Putin e os russos. 

Mas não foi isso que aconteceu na China. O mais provável é que o “Tank Man” tenha sido executado dias depois dessa famosa fotografia, e sabemos que milhares de outros alunos foram massacrados em Tiananmen. E anos mais tarde, quando o tal professor foi visitado no seu gabinete por um aluno chinês, este perguntou. “Porque é que tem essa fotografia na porta? Sabe que isso nunca aconteceu, certo? É só uma peça de propaganda ocidental.”

"Tank men" na Ucrânia. Qual será o seu futuro?
Até as lutas mais nobres podem ser esmagadas. Acontece a toda a hora. Por isso costumo achar que ou acreditamos que esses actos voluntários de heroísmo altruísta vivem para sempre na Glória eterna de Deus, ou o mais provável é entrar em desespero. As pessoas que esperam justiça perfeita nesta vida tendem a desiludir-se.

Devemos, por isso, ser brutalmente honestos. É possível que Putin conquiste a Ucrânia e a sujeite á sua tirania; que sobreviva às sanções que o Ocidente impõe ao seu governo; que tome nota dos russos que se opõem a ele e os destrua agora que se revelaram, deixando-o numa posição mais forte que nunca. E é perfeitamente possível que dentro de uma ou duas décadas muito poucas pessoas se recordem das terríveis atrocidades cometidas pela Rússia na Ucrânia. Quantos jovens hoje sabem que a Rússia enviou carros blindados para a Checoslováquia em 1968 para esmagar as manifestações contra o Governo comunista durante a chamada “Primavera de Praga”?

Então, se a ideia é estarmos “com a Ucrânia” – e espero que seja – é bom que estejamos prontos a estar “com a Ucrânia” a longo prazo. Porque por mais que queiramos que este espetáculo de terror acabe dentro de uma semana, o mais natural é que isso não aconteça. E nem todas as lutas contra o mal têm o final feliz dos filmes da Marvel. Às vezes os maus vencem, e não dá para voltar atrás no tempo e tentar outra vez. Os mortos permanecem mortos, e temos de viver com isso.

Continuaremos a rezar pelos ucranianos e a fazer sacrifícios para ajudar quando já não estiverem nas manchetes, quando os media tiverem passado para outro pseudo-evento pensado para excitar os espetadores e aumentar as audiências? Espero que sim. Caso contrário, dentro de 10 anos os jovens estarão a perguntar: “Então, está a dizer que a Rússia invadiu a Ucrânia? Pensei que tinha feito sempre parte da Rússia”. E os universitários russos dir-lhes-ão: “E fez. O boato de que não fez é apenas propaganda ocidental”.

A verdade é a primeira baixa na guerra. E com demasiada frequência essa ferida infecta e espalha-se, em vez de sarar. O povo heroico da Ucrânia merece mais do que apenas o mais recente ciclo noticioso. Merece o nosso compromisso a longo prazo, as nossas orações contínuas e a nossa devoção absoluta a viver na verdade em vez de numa enganadora teia de mentiras, ou o conforto fácil de um esquecimento conveniente.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 8 de Março de 2022)

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