Wednesday, 23 March 2022

Somos mais livres que os ucranianos?

Francis X. Maier
Dia de semana, à noite. Tínhamos acabado de ter um óptimo jantar. E agora, relaxados e confortáveis na nossa sala de estar, ligámos a televisão para ver as últimas notícias da Ucrânia. Em Lviv é meia-noite e o horizonte escuro está iluminado por uma chama cor-de-laranja, o mais recente alvo dos mísseis russos. Seguem-se imagens de um bairro civil destruído, e vítimas em lágrimas; seguidas de outras imagens de uma longa trincheira que agora serve de vala comum, recheada de corpos rapidamente amortalhados. E depois disso, um anúncio.

É um anúncio para algo caro – férias na Jamaica, um Cadillac eléctrico, um conjunto de implantes dentários, esqueço-me do produto, mas não interessa. Uma actriz atraente, por volta dos 40 anos, explica porque é que o adquiriu. Sim, pode parecer caro, mas ela queria-o, merecia-o e, explica, “tive de aprender a pôr-me em primeiro lugar”. Depois voltámos às imagens da redação, com opinadores a comentar a carnificina na Ucrânia.

“Tive de aprender a pôr-me em primeiro lugar”. Por um instante a minha imaginação viaja e imagino esta pobre criatura do anúncio, envolvida numa batalha titânica contra o seu “eu” altruísta por um conjunto de implantes dentários.

Mas a minha mulher, estupefacta, estraga o sonho. “O que é que aquela mulher acabou de dizer?” A minha cara metade trabalhou a vida toda em educação, e depois de quatro décadas a lidar com miúdos – a maioria dos quais quase tão centrados em si mesmos como é possível ser – ela tem a credibilidade calejada. Ela sempre adorou os seus alunos, mas nunca observou neles, nem em mais ninguém, qualquer problema em “aprender” a “colocar-se em primeiro lugar”. Claro que o seu cepticismo não é bem-vindo numa economia de consumo. Tenho uma razão para falar disto, já lá vou.

A guerra na Ucrânia tem todos os elementos de um videojogo excepcionalmente realístico. Só que aqui há pessoas verdadeiras e estão mesmo a combater e a morrer. Há poucas imagens no passado recente que nos marcam tanto como as de homens ucranianos a escoltar as suas famílias até à fronteira polaca e depois a voltar para trás para combater. Sim, eles são obrigados a ficar para lutar, mas a maioria fá-lo, e fá-lo voluntariamente, como se vê pela teimosa resistência à invasão russa.

Eles lutam por algo mais importante que si mesmos, e neste caso trata-se da sua nação, das suas famílias, casas e compatriotas. E eles lembram-se. Lembram-se da selvajaria que foi a Segunda Guerra Mundial que violou e pilhou a Ucrânia. Lembram-se de como os bolcheviques perseguiram as suas igrejas, as deportações soviéticas de agricultores, académicos e clero inocentes, e lembram-se do Holodomor, a campanha genocida de fome que Estaline impôs à Ucrânia, matando milhões.

Seria demasiado melodramático descrever a resistência ucraniana como “destemida”, afinal o temor da morte é uma característica humana universal. Mas a vontade de arriscar a própria vida por uma causa maior revela uma liberdade autêntica, uma liberdade que vem da abnegação e não da auto-indulgência. É uma liberdade que contrasta de forma desagradável com aquilo a que nós costumamos chamar “liberdade”, do conforto das nossas vidas.

Tive de aprender a colocar-me em primeiro lugar.” Este é o nosso lema não oficial. E não é por acaso. Para o público americano os anúncios são uma forma de catequese de estilo religioso, tal como Neil Postman compreendeu há anos no seu ensaio The Parable of the Ring Around the Collar (ver aqui). Se os americanos não comprarem coisas, e continuarem a comprar imensas coisas mais, tudo se desmorona. Por isso precisamos de abandonar os nossos escrúpulos sobre o desejo excessivo e o consumo infindável. Precisamos que nos ensinem, e precisamos de aprender, a colocar-nos a nós mesmos em primeiro lugar.

Para isso é preciso um currículo social de constante excitação do apetite popular por mais – e é por isso que Postman também sugere que aos estrangeiros basta olhar para Las Vegas para compreender a América. Aqui, no coração do império, longe de terras curiosas como a Ucrânia, vivemos cada vez mais numa permanente bolha de presente; uma bolha que não está carregada de memória ou das suas lições, infestada de distrações, falsos prémios (reembolso de todas as compras em dinheiro!), apetites manufacturados e ilusões mascaradas de liberdade.

Para proteger essa bolha precisamos de agentes ágeis, com capacidades analíticas superiores, fundados na psicologia comportamental. Sem grandes surpresas, Las Vegas é um bom modelo. Em Addiction by Design: Machine Gambling in Las Vegas, a professora Natasha Dow Schüll, do MIT, descreveu o enorme esforço feito pela indústria do jogo para conhecer, alimentar e assim moldar os seus clientes. Os dados coligidos pela indústria acabam assim por determinar o aspecto, a sensação e o equilíbrio risco-benefício da experiência. Assim os clientes continuam a regressar e, no final de contas, a perder. O jogador individual numa máquina está sozinho e profundamente isolado na sua própria zona mental, aguentando por vezes um dia inteiro sem parar para comer ou para ir à casa de banho e sem outros jogadores a chatear.

Uma das viciadas com quem Schüll falou, uma mulher chamada Mollie, descreveu a sua experiência assim:

Quanto mais jogava, mais sábia ficava sobre as minhas possibilidades [de ganhar]. Mais sábia, mas também mais fraca. Menos capaz de parar. Hoje quando ganho – e de vez em quando ganho – meto tudo de volta nas máquinas. O que as pessoas nunca percebem é que eu não estou a jogar para ganhar. Eu jogo para continuar a jogar – para continuar naquele ambiente da máquina em que mais nada interessa. Todo o mundo gira à nossa volta, mas não conseguimos ouvir mais nada. Não estamos verdadeiramente presentes – somos nós e a máquina, só nós e a máquina.

Outras indústrias têm visto e aprendido, adaptando técnicas de psicologia comportamental para os seus próprios fins. A publicidade é um exemplo.

Tive de aprender a colocar-me em primeiro lugar.” É uma simples frase, apenas oito palavras. Mas não a consigo tirar da cabeça, porque levanta uma simples questão. Afinal de contas quem é que é verdadeiramente livre? Os combatentes nos escombros da Ucrânia, ou nós?


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 17 de Março de 2022)

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