Wednesday, 29 December 2021

Um Mundo de Encarnação

Randall Smith
Quando Santo Agostinho chegou a Milão, em 384, já tinha ficado insatisfeito com os maniqueus, a seita gnóstica a que tinha estado ligado nos últimos 12 anos. Seguindo o conselho de amigos, começou a ler “certos livros dos platonistas”. Estas obras ajudaram-no a transcender os conceitos estreitamente materialistas e conceber um Deus que não é uma coisa, mas é a fonte do ser de todas as coisas. Foi um passo importante, mas não ausente de perigos.

No seu esforço para se unir às “coisas do alto” acabou por se encher de outro tipo de arrogância, dando-lhe a ilusão de ocupar um lugar privilegiado fora do mundo, olhando-o de cima. Ao procurar o Deus “nas alturas”, Agostinho esqueceu-se de procurar o Deus “cá em baixo”. O Cristo Encarnado – cujo nascimento celebramos nesta época de Natal – ensinou-lhe a encontrar Deus não só “nas alturas”, mas também “cá em baixo”: não só nos picos da mente, mas na matéria e nas realidades criadas do mundo.

Por isso, embora Agostinho tenha aprendido muito dos livros platónicos, o que é igualmente interessante é aquilo que não encontrou lá. Não encontrou nada sobre a Palavra se tornar carne e habitar entre nós; nada sobre o Deus que se esvazia e assume a forma de um servo; nada sobre Jesus a humilhar-se e a tornar-se obediente até à morte, mesmo a morte de cruz. “Onde estava esse amor que edifica sobre as fundações da humildade?”, perguntou.

Esta humildade não se baseava no desprezo pelo corpo, mas no amor bem-ordenado por ele; não em considerar os pecados como coisas carnais, mas na total responsabilização por eles; não em tentar elevar-se até ao divino, mas no reconhecimento das próprias limitações e pecados e da necessidade de perdão e auxílio divino.

E essa foi a segunda coisa que Agostinho não encontrou nos livros dos platonistas: um relato da graça de Deus. Esse, acabou por encontrar nas cartas de São Paulo.

Em breve deixaria de se querer contar entre um grupo de elite de filósofos que procuravam chegar aos pontos mais altos da “linha dividida” de Platão através dos seus próprios esforços intelectuais. Doravante, pelo contrário, depositaria a sua fé no “criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis”, que se tinha mergulhado na matéria da sua criação no amor, para a elevar no amor.

Para Agostinho a “linha dividida” já não era apenas uma ascensão vertical. A “salvação” era agora “história da salvação”. A linha tinha sido deitada de lado, por assim dizer, tornando-se a história da entrada de Deus na História – a sua autorrevelação e a redenção da humanidade realizadas no tempo e nos eventos da história humana. Desta perspetiva os humanos devem fazer a sua parte, mas a sua parte é tornada possível pelo amor divino que existe para além dos nossos méritos e dos nossos esforços. Assim, para se ser elevado, é preciso primeiro ser “como Cristo” e abraçar os humildes, os pobres, os meigos e os humildes. É necessário unir-se ao seu corpo e morrer para nós mesmos, e para o nosso egoísmo, para se ser erguido com Ele na comunhão eterna de amor, como o Filho está unido ao Pai. 

Santo Agostinho
Forçado a contemplar o significado de o Verbo se tornar carne, Agostinho chegou a várias conclusões importantes. A primeira é de que a matéria não é má, nem é a fonte do mal. Pensar que sim implica confundir uma causa com um efeito. Não é o corpo da mulher que leva o homem a pecar, mas sim a sua incapacidade de apreciar a beleza da pessoa como um todo: corpo, alma, espírito e mente. Ironicamente, Agostinho nunca conseguiu deixar de estar viciado em sexo durante os seus tempos com os maniqueus, que odiavam o corpo. Esta liberdade só foi alcançada quando ele reconheceu que o corpo não é uma prisão, mas um instrumento com o qual a alma exprime o seu amor desinteressado por Deus e pelo próximo.

O mesmo se aplica ao resto do mundo material: não se trata de uma prisão da qual temos de ser libertados. Através da encarnação ele torna-se o local da nossa salvação. Não somos salvos do mundo, somos salvos no mundo e com o mundo. Somos salvos de uma relação disfuncional com o mundo, através da qual tentamos usá-lo para nos exaltarmos, numa tentativa de autocriação e autodeificação.

Deus deu à Criação uma ordem e é importante que nos conformemos a ela. Não nos realizamos fugindo para outro mundo ou impondo uma ordem estranha a este. Realizamo-nos, e o nosso mundo realiza-se connosco, quando compreendemos a ordem que Deus pretende e nos disciplinamos para preservar e alargar essa ordem. E nesta nova vida, este acesso a uma nova ordem e harmonia não é algo que criamos ou alcançamos sozinhos; é algo que nos é dado de fora do mundo, por um poder fundamental de amor criativo que transcende as nossas próprias capacidades.

Por isso a redenção cristã é a transformação da criação e da pessoa, não uma obliteração ou negação. Não podemos destruir a natureza para realizar o nosso destino humano. Nem podemos controlar completamente a natureza e canalizá-la para os nossos propósitos egoístas sem nos preocuparmos com o bem-estar dos outros. A mensagem cristã é de que apenas realizamos o nosso destino humano quando o vivemos de acordo com a ordem natural criada por Deus, compreendendo-a de forma “encarnacional” e tratando-a “sacramentalmente” como um “instrumento” e “corporização” do amor de Deus.

Deve ter sido fascinante para um homem com um intelecto tão sofisticado como o de Agostinho reconhecer que todo o mundo conceptual da antiga filosofia tinha sido virado de pernas para o ar por uma única criança numa manjedoura em Belém – uma criança que, para além de toda as expectativas humanas, era o Verbo feito carne. Hoje não é mais fácil do que então, embora também não seja mais difícil. Mas se a história for verídica – e é – então não é nada menos do que a chave do sentido de todas as coisas.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na segunda-feira, 27 de Dezembro de 2021)

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