Wednesday, 8 December 2021

Restaurar a Confiança depois da Crise de Abusos

Stephen P. White
No próximo ano assinala-se o vigésimo aniversário da Carta de Dallas, a resposta institucional mais robusta dos bispos americanos à crise dos abusos sexuais. A Carta apresentou um esquema uniforme de relato e de responsabilização do clero que entretanto se tornou o padrão para lidar com casos de abuso não só nos Estados Unidos, mas em igrejas locais um pouco por todo o mundo.

Na verdade, algumas das reformas que hoje damos por adquiridas – como a participação obrigatória dos casos às autoridades civis e a tolerância zero para abusadores – continuam a estar muito à frente do resto do mundo.

Escusado será dizer que a Carta está longe de ser perfeita. Como ficou patente no caso do McCarrick, a Carta não adiantou nada para lidar com más práticas ou abusos cometidos por bispos. E continuam a existir preocupações legítimas para com padres que, tendo enfrentado alegações que ficaram por provar, ficam num estado de limbo ministerial. No seu mais recente plenário em Baltimore, os bispos discutiram mudanças a fazer à Carta.

De Roma também chegaram reformas importantes – Come una madre amorevole e Vos estis lux mundi, por exemplo – que deram mais gás a esforços para combater os abusos em todo o mundo, sobretudo no que diz respeito a más-práticas dos bispos, e que nos Estados Unidos complementam a Carta.

O que não significa que a crise já esteja no passado. A realidade é que o abuso sexual de menores ou de adultos, praticado por clero, ou por qualquer outra pessoa, nunca vai ser completamente erradicada. Mas podemos ter esperança de que chegue um momento, seja dentro de décadas ou dentro de séculos, em que os abusos na Igreja já não sejam vistos como uma crise global.

Os efeitos desta crise de abusos estarão com a Igreja durante muito tempo. Uma vez perdida, a confiança não é fácil de recuperar. Isto aplica-se, claro, às vítimas individuais, mas também à confiança ferida entre o clero, entre o clero (especialmente bispos) e os seus rebanhos, e entre a Igreja e o mundo.

Tão certo como o mal mais grave dos abusos é sofrido pelas próprias vítimas, as consequências mais duradouras, e talvez as que mais gozo dão ao Inimigo, são as que a credibilidade da Igreja sofre. Mentiras contadas há anos tornam mais difícil a proclamação e a escuta do Evangelho agora; violência cometida em segredo há décadas continuará a ameaçar as almas daqui a uma geração.

É importante, por isso, reconhecer que as reformas jurídicas como a Carta de Dallas e a Vos estis (por mais imperfeitas e tardias) são conquistas reais e necessárias. Mas também é importante reconhecer que, no que toca a abordar a crise na Igreja estas reformas necessárias e contínuas são – e sempre seriam – a parte mais “fácil”.

Então como é que a Igreja lida com a parte difícil? Como é que aborda o défice de confiança que existe entre leigos e clero, sobretudo entre leigos e bispos? Como é que a Igreja ultrapassa as profundas divisões que existem entre os católicos, que a crise dos abusos pode não ter causado, mas que certamente revelou e aprofundou? Como é que a Igreja, que se tornou tão feia aos olhos de tantos, continua a proclamar a mensagem da misericórdia e da salvação?

O ponto de partida
Começamos de novo a partir de Jesus Cristo. Começamos por ir ao encontro de Nosso Senhor nas Escrituras, nos Sacramentos e no nosso próximo. Encontramo-nos com ele na oração. Escutamo-lo. Fazemo-lo não só como indivíduos, mas como membros do Seu Corpo, da Sua Igreja. Escutamos os nossos bispos, os nossos padres e o Santo Padre. Escutamos com humildade e, quando chegar o momento, falamos de forma corajosa, na caridade e na verdade. Competimos uns com os outros na caridade, paciência e louvor.

Fazer o mais difícil significa recusar-nos a deixar para trás aqueles por quem somos responsáveis e aqueles a quem respondemos, aqueles com quem estamos ligados pelo baptismo. Fazer o mais difícil significa escutar e falar mesmo com aquelas pessoas que cremos estejam errados. E fazemos isso não porque confiamos uns nos outros, mas porque confiamos naquele que nos ordena a amar até aos nossos inimigos.

O clero tem de estar disposto a escutar os leigos mesmo quando – especialmente quando – eles dizem as verdades que mais custa ouvir. Os leigos não terão sempre razão. Deus bem sabe que os nossos padres e bispos também estão longe de ser perfeitos. Mas um pai que não escuta os seus filhos não os conhecerá, não compreenderá as suas forças e fraquezas. E as ovelhas que ignoram o pastor rapidamente se perdem.

Nada disto acontece de uma vez só. Requer oração constante, conversão, arrependimento e pedir e dar perdão. É discipulado. É um trabalho duro. Vamos falhar, provavelmente muito. Mas sabemos que o Senhor empresta a sua graça aos nossos humildes esforços, por isso persistimos. Caminhamos juntos, como São Paulo nos exorta, “com toda a humildade e gentileza, com paciência, suportando-nos uns aos outros por amor, esforçando-nos para preservar a unidade do espírito através do elo da paz”.

Convidamos outros a juntarem-se pelo caminho, para descobrir o que encontrámos. Falamos aos outros sobre este Deus que, quando ainda éramos pecadores, nos amou até dar a vida por nós. Todo o azedume, a fúria, a revolta, a gritaria e o desprezo devem ser removidos de dentro de nós, bem como toda a malícia. Esforçamo-nos para sermos bons uns para com os outros, compassivos, para nos perdoarmos como Deus nos perdoou em Cristo.

Este é o caminho em frente para a Igreja na sequência da crise de abusos sexuais do clero, porque este é sempre o caminho em frente para a Igreja. Se parece ser simultaneamente simples e difícil, é porque é. Se vos soa familiar, ainda bem. A maior parte do que acabo de dizer vem diretamente de São Paulo.

Se vos soa ao que o Papa Francisco chama sinodalidade – não um evento, ou um parlamento, ou uma “nova Igreja”, mas a recuperação de um sentido partilhado de missão, radicado na verdade, no nosso baptismo comum e na missão universal de todos os cristãos – é porque é isso mesmo.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 2 de Dezembro de 2021)

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