Thursday, 7 October 2021

Abusos em França. Números que não batem certo

Foi divulgado esta semana um relatório sobre abusos sexuais praticados em ambiente eclesial, em França.

O relatório fez manchetes em todo o mundo. Dias depois de ter sido revelado que entre 1950 e 2020 houve cerca de 3.000 padres ou religiosos que abusaram sexualmente de menores em França, na terça-feira soube-se que terá havido até 216 mil vítimas, ou mais, uma vez que o número sobe para os 330 mil se forem contabilizados os leigos que abusaram de menores em contextos de igreja.

São números verdadeiramente chocantes. Aliás, ainda que fosse só uma vítima e um abusador, não deixaria de ser verdadeiramente chocante. Contudo, penso que os dados apresentados merecem ser questionados.

Estimativas, não factos

Em primeiro lugar é preciso que fique muito claro que não estamos a falar de números concretos, mas sim de estimativas. E mais, que as estimativas se baseiam em três fontes: os casos revelados por vítimas que fizeram queixa; os casos sobre os quais foram encontradas referências em documentação da Igreja e, por fim, um inquérito levado a cabo junto da população maior de idade em França.

E qual é a distribuição? 2.700 vítimas tomaram a iniciativa de denunciar os seus casos e 4.800 vítimas referidas nos registos diocesanos. Isto significa que os restantes 209.500 casos da estimativa foram calculados com base no tal inquérito feito à população.

Convém recordar que estamos a falar de casos de abuso sexual de menores, e não de uma sondagem eleitoral, ou um inquérito de satisfação com um serviço. Eu compreendo que apesar dos apelos, nem todas as vítimas têm a coragem de falar dos seus casos, e compreendo ainda que nem todos os casos que tenham de facto existido estejam registados nos arquivos diocesanos. Mas uma diferença deste tamanho?

Quais foram as perguntas feitas no inquérito? Houve alguma triagem das respostas para se poder averiguar da plausibilidade das respostas? Confesso que não li as 2.500 páginas do relatório à procura da resposta, até porque o meu francês não é suficientemente bom para poder compreender bem os conteúdos técnicos, se é que lá estão descritos.

A surpresa com os números só aumenta se tivermos em conta o número de padres abusadores, segundo o relatório. Mesmo que se aponte para o máximo estimado de 3.200 ao longo dos 70 anos, isso representa cerca de 3% do universo total de 115 mil. Até aqui tudo bem – salvo seja – pois bate certo com as estatísticas encontradas noutros países e está mesmo abaixo de alguns.

A questão é que, juntando os dois números, somos forçados a concluir que cada padre ou religioso abusador teve, em média, mais de 67 vítimas. É um número absolutamente incrível, no sentido literal da palavra, de que não dá para acreditar.

Tenhamos em conta que segundo o relatório John Jay, sobre os abusos clericais nos Estados Unidos, que foi levado a cabo por uma instituição altamente credível, naquele país a maioria dos padres tinha abusado apenas de uma pessoa. Houve casos de abusos em série, mas são em número reduzido.

Onde está a discrepância? Claro que pode estar do lado dos padres. Se a estimativa do número de padres abusadores estiver (muito) aquém, então o número de vítimas já faz mais sentido. Mas se o número de padres está mais ou menos correcto, então estamos perante uma clara inflação do número de vítimas.

Credibilidade

A prática comum nos países onde a Igreja está mais avançada em lidar com este problema é de analisar cada acusação e tentar perceber se é, ou não, credível. Não é por haver acusações falsas que devemos desvalorizar todas as denúncias, mas por uma questão de justiça para com os acusados e as verdadeiras vítimas, devemos avaliar bem e distinguir entre o que é verdade, invenção ou confusão. Incrivelmente, o relatório chega a sugerir que a Igreja pague indemnizações sem que haja processo judicial. Mas isso faz algum sentido como regra?

Há mais. Michael Cook, no Mercatornet, realça uma série de confusões com datas – parece que ao contrário do que dizem, há dados que remontam à década de 40 – e aos dados sobre outras instituições, como as escolas, em que só foram tidas em conta escolas públicas sem internato.

Isto interessa? Claro que sim. Uma coisa é haver uma instituição em que existem alguns elementos que se comportam mal e outros que, motivados pela compreensível – mas inaceitável – vontade de proteger a reputação, abafam os casos; outra é haver uma organização que está irremediavelmente corrupta. Estes números, e a forma como foram reproduzidos na imprensa e nas redes sociais de todo o mundo, reforçam a ideia de uma instituição que mais não passa de uma rede de abusadores. O resultado é que já hoje vimos Macron a exigir explicações ao episcopado francês sobre o segredo da confissão e o porta-voz do Governo a insistir que “nada é mais forte que as leis da República”, em resposta ao comentário do presidente da Conferência Episcopal, que terá dito que no segredo da confissão não se pode mexer.

A questão dos abusos sexuais na Igreja é muito, muito grave. Os primeiros interessados em limpar a casa devemos ser nós, católicos. Os relatórios e estudos aprofundados sobre as causas e os erros cometidos pela hierarquia são bem-vindos, sempre, mesmo que doam muito, mas tenho sérias dúvidas de que este relatório sirva para muito mais do que para bater na instituição e perpetuar números que parecem ter muito pouco de científicos.

Esperemos que o tempo e olhares mais rigorosos e independentes aos números ajudem a revelar a verdade, pois essa sim nos liberta e é até mais forte que as leis da República de Macron.

4 comments:

  1. Amigo, efectivamente os números parecem manifestamente exagerados, mas evidenciam a prática reiterada destes actos abjectos. A mim choca-me e entristece-me o facto de ter acontecido, independentemente da margem de erro. Como disse o nosso sumo pontífice, "vergonha"

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    1. Não podia estar mais de acordo! Isso é de facto o mais importante.

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  2. A questão da homossexualidade dentro da Igreja e a sua ligação directa, provada, mas não veiculada, vem demonstrar a perversidade deste desvio natural e a sua influência nefasta na sociedade e, neste caso particular, na Igreja. A Igreja, enquanto instituição, não tem de pedir desculpa por nada, porque foram as pessoas e não a instituição como tal que fizeram mal. Apenas tem de prestar contas a Deus. Mas devia agir de forma mais eficaz, expulsando de imediato os clérigos prevaricadores (excomungando-os caso não tenham confessado) e denunciando-os à justiça civil, mas de forma discreta e silenciosa. Já basta os ataques diários à Igreja. Não há direito que a sociedade e, por incrível que pareça, membros da própria Igreja, venham denegrir esta instituição divina, omitindo todo o bem que faz por esse mundo, a começar pela divulgação da Boa Nova da salvação, dando trunfos ao Diabo, que fala pelos media e pelos seus servos espalhados por todo o mundo,num caminho de auto-comiseração e auto-destruição.

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  3. Tudo é grave.
    É grave o assunto.
    É grave a forma leviana com que está a ser tratado.
    Sondagens?
    Depois das sondagens que colocavam Carlos Moedas a milhas do Fernando Medina...
    Apurar crimes ocorridos há dezenas anos por sondagens, parece-me o epílogo do Estado de Direito Democrático.

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