Wednesday, 10 March 2021

O Animal Jardineiro

Stephen P. White
A Quaresma é um tempo de preparação. As nossas observâncias quaresmais de oração, penitência e esmola ajudam-nos a limpar o afeiçoamento que desenvolvemos por vícios, que de outra forma inibiriam o nosso crescimento espiritual. O trabalho da Quaresma prepara-nos, corpo e alma, para as alegrias da Páscoa e a celebração de nova vida na Ressurreição.

No final do inverno e início da primavera, o trabalho de cuidar de um jardim é semelhante aos esforços da Quaresma. As coisas velhas, mortas ou doentes, precisam de ser cortadas e retiradas dos canteiros para abrir espaço para novo crescimento – crescimento que ainda não vejo mas que sei (espero?) se manifestará em breve. E depois há as ervas daninhas, que por manha demoníaca continuam a propagar-se e a crescer enquanto o resto do jardim faz o seu descanso invernal. Estas devem ser arrancadas pela raiz.

Na Virgínia do Norte, onde eu vivo, começam-se a ver já os primeiros indícios da primavera. Alguns narcisos e túlipas começam a emergir da terra encharcada. As primeiras flores de açafrão e amarilidáceas começam a florescer. A relva está molhada e enlameada, especialmente nos locais onde as crianças estiveram a brincar. As rosas precisam de ser podadas e a terra pesada da horta tem de ser revirada. Na maior parte o jardim parece morto e até um bocado descuidado. Quando chegar a primavera já vai estar tudo diferente, um festival de vida e de cor.

Os paralelos entre o trabalho de um jardineiro e um penitente na Quaresma, ou entre as flores da primavera e a alegria da Páscoa, não são difíceis de ver. Mas a analogia entre a jardinagem e a vida espiritual vale a pena ser contemplada de forma mais profunda também. Ao longo de toda a história da salvação, frequentemente nos momentos mais críticos, encontramos um jardim.

A primeira habitação natural do homem é um jardim, O Jardim: “O Senhor Deus plantou um jardim no Eden, a oriente, e colocou lá o homem que tinha formado”. Vale a pena reparar que um jardim não é um espaço silvestre, incorrupto pela mão do homem, mas um espaço que está ordenado e cuidado. É o próprio Deus que planta. O Paraíso – a etimologia sugere um jardim murado – é um local de ordem e de harmonia entre Deus e o homem, homem e Criação, sobre a qual nos foi dado o domínio.

O nosso castigo pelo pecado é a perda do Paraíso, e da relação ordenada que existia no Jardim. Pelo pecado tornámo-nos distantes do nosso Criador e a nossa relação com a criação passou a ser marcada pelo esforço e o desejo de poder. Caim tornou-se um trabalhador da terra mas a sua oferta não agradou a Deus. O homem colabora com a natureza para conseguir sustento – qualquer agricultor sabe que a sua colheita depende da terra, das sementes e do tempo. Depois da Queda, essa colaboração mantém-se, mas está marcada pela aflição e pela necessidade. Uma quinta, tal como a selva, pode ser bela e boa, mas não é um jardim.

Os jardins reaparecem ao longo das Escrituras. No Cântico dos Cânticos, por exemplo, o jardim é um lugar de intimidade entre o amante e a amada, e, deforma alegórica, entre Deus e o seu povo esponsal, Israel. Mais uma vez, o jardim é um local onde a relação correcta entre Deus e o homem se reflecte na ordem e na beleza das redondezas.


Nos Evangelhos, o pecado e a desobediência de Adão, que nos custaram o Jardim de Eden, foi desfeito pela obediência de Cristo à vontade do Pai no Jardim do Getsémani. Cristo não foi expulso do Gétsemani, foi levado à força. E quando o seu trabalho de redenção se cumpre, São João diz-nos onde depositaram o seu corpo crucificado: “No lugar em que ele foi crucificado havia um jardim, e no jardim um sepulcro novo, em que ninguém ainda fora depositado.”

Por isso, quando Cristo, o Novo Adão, ressuscita na Páscoa, fá-lo da terra de um jardim. Naquela manhã gloriosa, Maria Madalena veio ao sepulcro onde encontrou o Cristo ressuscitado. Mas de início ela não reconhece Jesus, confunde-o com o jardineiro. Todos formos feitos para um jardim; fomos redimidos num Jardim pelo Divino Jardineiro.

No meio disto tudo, o jardim é mais do que uma alegoria para a harmonia com o nosso Criador e a sua criação. Jardinar é, ou pode ser, um empreendimento moral. Um jardineiro precisa de conhecer diferentes plantas, os solos, o sol e o vento, a chuva e o tempo. Se ele quiser ordenar o seu jardim para que seja mais belo tem de usar esse conhecimento para trabalhar com a natureza e não contra ela.

Cada jardim é uma escola de teleologia: a semente brota, não porque o jardineiro o fez brotar, mas porque é isso que as sementes fazem! A flor floresce para produzir fruto e o fruto para a semente! Esta é uma lição elementar, mas uma que, nos nossos dias, é positivamente subversiva: A natureza tem propósitos! Todos os jardineiros sabem-no, não como um princípio abstracto, mas como um simples facto.

Não consigo pensar num antídoto mais poderoso para a nossa era tecnocrata e utilitária do que aprender a trabalhar com a natureza e não contra ela. Não somos, como pretendia Descartes, “senhores e donos da natureza”. Recordemos a definição de Cícero da virtude: “A virtude é um hábito da mente, consistente com a natureza, a moderação e a razão”. Por todas estas razões, a jardinagem é uma excelente escola para adquirir estes hábitos.

Podemos dizer muita coisa sobre o animal humano – que é racional, político, social, e por aí fora. Talvez lhe devemos acrescentar mais uma: O homem é o “animal jardineiro”. Veremos se pega. Eu estarei a ponderar estas coisas muito depois de a Quaresma dar lugar à Páscoa.

Entretanto, no meu jardim está sol (por enquanto) ar fresco e ervas para arrancar.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 4 de Março de 2021)

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