Friday, 22 January 2021

Eu não voto, mas se votasse não era nele

Desde os 14 anos que sou monárquico e nunca votei em eleições presidenciais. Faço-o conscientemente. Claro que há muitos monárquicos que votam nestas eleições, e não os critico, mas a minha forma de mostrar a minha discordância com o regime é de não participar no processo.

Pela mesma lógica não costumo comentar os candidatos ao cargo, mas escrevo este texto porque André Ventura tem-se tornado um fenómeno maior do que aquele que representa nestas eleições em particular e porque estou verdadeiramente preocupado em ver muita gente com quem em princípio me identifico – católicos ou cristãos, tendencialmente conservadores, preocupados com questões sociais como o aborto e a eutanásia, etc., – a deixarem-se levar por um fascínio que não só não compreendo como acho perigoso.

Uma última nota, antes de continuar. Há quem diga que os críticos do Chega da direita só temem a perda de influência dos seus partidos. Sobre isso sou insuspeito. Não tenho partido, nunca tive, muito menos exerci qualquer cargo ou tenho em perspetiva fazê-lo.

1 – A fraude

O André Ventura até pode ser mais ou menos simpático, não está em causa o gosto pessoal. O problema é que eu não confio em André Ventura. E não confio em André Ventura porque acho que ele é uma fraude.

É inteligente, sem dúvida; é articulado, sem dúvida; tem boa presença, sem dúvida e é cativante, evidentemente. Mas tudo isso só torna mais perigoso o fenómeno, porque a verdade é que eu não acredito por um segundo que ele concorde com uma fração das coisas que diz para cativar o eleitorado do Chega.

E isso – um político que prega aquilo em que não acredita, acicatando rivalidades e divisões para se promover e conquistar eleitores – é muito grave. Mas o populismo é isso mesmo.

Eu não acredito que Ventura seja contra o casamento homossexual, que seja contra a eutanásia e que seja contra a legalização do aborto. Há registos de ele ter defendido quase todas estas coisas, e mais, como a legalização da prostituição e alguns desses registos são até bem recentes. Um homem não pode mudar? Pode. O problema é que não vejo qualquer sinal de que essa mudança seja sincera e não um simples aproveitamento político.

Da mesma forma não acredito por um segundo que Ventura seja o devoto católico por que se faz passar, deixando-se fotografar ajoelhado em oração, afirmando sem vergonha na cara que a sua missão está intimamente ligada à mensagem de Fátima e depois criticando o Papa.

André Ventura é um actor. No teatro e no cinema isso não é vergonha nenhuma, mas na política faz dele uma fraude.

2 – As políticas

Há políticas que o Chega defende que são discutíveis, mas há outras que são pura e simplesmente inaceitáveis. A castração química é uma solução aparentemente fácil para um problema terrível, mas é uma solução que não tem provas dadas, tem efeitos secundários gravíssimos para a saúde e por isso jamais pode ser imposto a quem quer que seja.

A prisão perpétua atira pela janela toda a base de um sistema penal que tem por objetivo reformar o cidadão e não o castigar ad aeternum e toda a insistência na segurança faz passar uma imagem completamente falsa de Portugal ser um país inseguro, que não é. Da mesma forma, nunca, repito nunca, terá o meu apoio quem publicamente apelida pessoas – sejam quais forem os seus crimes – de monstros, como o Chega faz quando fala da questão da criminalidade.

Um dos problemas mais graves é mesmo a insistência na tecla dos ciganos. E o mais irónico é que eu acho que André Ventura foi mal compreendido quando, ainda candidato pelo PSD a Loures se tornou polémica a frase dele sobre os ciganos. Na altura ele disse que há um problema com os ciganos e foi crucificado por isso, mas é inegável que existe em Portugal – mais nuns sítios do que noutros – um problema com a integração dos ciganos. A forma como ele foi crucificado por um lado, mas elogiado por muitos, por outro, terá tido um papel no percurso que veio a seguir?

Agora, o discurso actual de Ventura sobre os ciganos é inacreditável. Propor leis específicas para membros de uma etnia? Está tudo maluco? E se reconhecemos que existe um problema com a integração dos ciganos, digam-me, por favor, como é que resolvemos isso cavando um fosso ainda maior entre ciganos e não ciganos? Hostilizando-os? Este género de discurso tem o condão precisamente de piorar as situações que pretende denunciar.

Por fim, o discurso desumanizante sobre os imigrantes é demoníaco. Sim, é esse o termo. Trata-se de criar um fantasma à volta de um problema que em Portugal simplesmente não existe e que acicata ódios e alimenta discursos xenófobos. Um cristão pode, naturalmente, defender a existência de regras e de limites à imigração, mas não pode, nunca, adoptar o tipo de discurso que o Chega adopta, sobre este assunto, muito menos o pode fazer invocando alguma espécie de messianismo fatimista. Mete nojo.

3 – Os apoiantes

Deixem-me clarificar já, para não ser mal-entendido. Se eu achasse que todos os apoiantes do Chega são idiotas, não estaria a escrever este texto. O que me preocupa é precisamente ver bons amigos, pessoas próximas, pessoas com as quais me identifico, a deixarem-se levar por este engodo.

A minha preocupação principal neste ponto é aquela franja de apoiantes do Chega que são inegavelmente de uma extrema-direita feia, porca e má e que estão a ganhar relevância e a sentir-se em casa no Chega.

Quando eu participo nas cerimónias do 10 de junho, em Lisboa, frente ao monumento de homenagem aos mortos nas guerras, sei que estão sempre lá os skinheads da praxe. Estão num grupinho, sozinhos, fazem a sua própria festa, mas não é possível olhar à volta e confundir o espírito do evento com a sua presença marginal. Portanto se eu visse que havia uma extrema-direita que votava Chega por achar que era o melhor que se arranjava, eu até compreendia. Mas não é isso que eu vejo. Eu vejo uma extrema-direita que se sente em casa no Chega e que o partido não se limita a aturar, mas que procura mesmo seduzir, com o discurso, com os gestos, com a simbologia. E isso… Bom, isso Chega para mim.

A imagem do apoiante de Ventura a fazer uma saudação romana durante o comício dele não é um infeliz acidente e a forma como outro se aproxima dele e o convence a baixar o braço não tem nada de condenação, mas de cautela e preocupação com a imagem. E este é apenas um caso de pessoas com claras conotações fascistas (uso o termo de forma pensada, e não como a esquerda que considera fascista tudo o que não esteja à esquerda do PSD) que estão felizes e entusiasmados no partido e não se vê nada da parte da estrutura para os demover ou para contrariar esse entusiasmo.

E por isso pergunto às pessoas de bem – os tais de quem o Ventura diz que quer ser Presidente – é neste barco que querem andar? São estes os vossos companheiros de viagem? Bem sei que a existência de fascistas e neo-nazis no partido não faz de vocês fascistas e neo-nazis mas devia, pelo menos, deixar-vos desconfortáveis. Deixa? É que eu não conseguiria estar ali de consciência tranquila. 

22 comments:

  1. Caro Filipe, vive num mundo criado pela narrativa da Comunicação Social, sei que é dificil pois está amarrado a um que está cada vez pior. A narrativa dos iluminados constrasta muito bem com a realidade e com a doutrina católica:

    http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20021124_politica_po.html

    Termino da mesma forma que o Filipe começa: "mas a minha forma de mostrar a minha discordância com o regime é de não participar no processo" - pois a minha é exactamente tão saudável e certeira como a sua. Vou votar André Ventura e Chega exactamente antes de mais nada para " mostrar a minha discordância com o regime"

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  2. Interessante artigo e bem escrito concordo com algumas coisas e outras não, a começar que não há políticos sérios em parte nenhuma do globo, e que todo o politico é uma actor, senão não consegue ser um bom politico, por outro lado nenhum politico acredita em nada mais que seja senão ele próprio!

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  3. Muito bem, subscrevo na íntegra! Ventura tem coragem e tem eloquência, é esperto e aguerrido e não o acho um monstro como por vezes o pintam. Mas as propostas que apresenta e que traz ao debate público são, para mim enquanto católica, irrelevantes e muito distantes daquilo que a minha fé procura: um mundo pacífico, humanista, justo, com liberdade e oportunidades para os que demonstrem mérito e com solidariedade e respeito entre as pessoas. Ora, o que ele diz e como o diz pouco ou nada tem que ver com o que Jesus nos ensinou. Que a quem erra não se perdoa nunca? Que o homem não tem redenção possível (ao contrário do que Jesus sempre nos ensinou)? Que os samaritanos devem ser mandados de volta para a terra deles, mesmo que dêm de beber a quem teve sede? Que as prostitutas como Maria Madalena não são pessoas de bem e devem ser ostracizadas? Que o crime define o homem? Enfim, gostava que muitos amigos católicos pusessem a mão na consciêcnia e não votassem só a pensar nos tópicos eutanásia-aborto-adopção homosexual, porque nem só disso é feita a vida do Homem e da Igreja.

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  4. Penso da mesma maneira!
    Um abraço Miguel Ortega Cláudio Força

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  5. Acho piada que um dos labels (tag)colocados para mais tarde ser possivel pesquisar mais facilmente seja "extrema-direita"....nao se esqueça de colocar o label corrupção quando colocar um texto sobre o Costa ou o Marcelo, e pedofilia quando for um texto sobre a Ana Gomes ou sobre a Igreja...

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  6. Ainda gostaria de referir que um monárquico não votar nas eleições presidenciais é como um ateu não querer entrar numa Igreja.

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  7. Obrigado Filipe pela clareza de posição numa matéria não perigosa.

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  8. Muito bem Filipe! Há valores que nunca podemos ceder!
    Se a sociedade quer combater a corrupção ou a politica profissional e de interesses, há outras formas, não temos de abdicar dos nossos valores essenciais. Bem haja

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  9. Afirmação do Filipe:"Bem sei que a existência de fascistas e neo-nazis no partido não faz de vocês fascistas e neo-nazis mas devia, pelo menos, deixar-vos desconfortáveis. Deixa? É que eu não conseguiria estar ali de consciência tranquila."

    Testemunho do Filipe:"Quando eu participo nas cerimónias do 10 de junho, em Lisboa, frente ao monumento de homenagem aos mortos nas guerras, sei que estão sempre lá os skinheads da praxe. Estão num grupinho, sozinhos, fazem a sua própria festa, mas não é possível olhar à volta e confundir o espírito do evento com a sua presença marginal"

    Conclusão: para bom entendedor meia palavra basta.

    O seu discurso está ferido de falsidades, de lógicas de causa-efeito maldosas, injustas, incoerentes.

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  10. Há na vida valores absolutos, que se impõem aos relativos. Mas, dentro destes, a opção André Ventura não serve porque esta outra (explicitar, por favor) é melhor. Qual?

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  11. Parabéns, 95% de acordo. (os outros 5% são porque eu vou às urnas)

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  12. Calma...Típico Julgamento na praça pública de uma pessoa ou partido q defende ou tenta defender os valores q acreditamos, com muitas apreciações subjectivas...

    Claro q vou votar no Chega, basta ler o programa para perceber que defende os valores em que acredito.
    Não sei se é actor ou não, se há ou não demonizacao, mas de certeza melhor qualquer um dos outros- o q não percebo é não aceito não é esta demonizacao do Ventura quando temos outros candidatos assumidamente anti Deus e anti Igreja. Filipe talvez apelar ao não voto nos partidos que são verdadeiramente perigosos, que defendem o aborto, a mudança de sexo, anti toiradas, anti caça, anti tudo, a eutanásia? Bem ou mal é o a melhor solução que temos.
    Como em todos os partidos e na política em geral há escroques que se colam ao partido mas esses , paciência.

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  13. Caro Filipe, gostaria de saber a sua opinião sobre as personalidades de João Ferreira, Marisa Matias e até de Ana Gomes, e ainda, mais importante, sobre as ideologias que preconizam. Será possível ler esse potencial texto antes de domingo?

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    1. Se eu soubesse que as pessoas com quem me identifico estavam a ser seduzidas pelas posições de João Ferreira, Marisa Matias ou Ana Gomes, leria com certeza.

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    2. E do Marcelo, do Rui Rio e do Xicão?

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  14. Filipe, muito oportuno!
    A facilidade com que André Ventura se identifica com o cristianismo em termos políticos, é uma fraude. Jesus teve e tem sempre outra atitude junto dos pecadores, junto de todos nós.

    Jesus não precisou ser anti-sistema, mas apenas "dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César". Jesus não quis ser anti-sistema, Jesus quis ser transformador de corações e, isso sim, muda o mundo.

    Ora, querer transformar o sistema e votar André Ventura é uma contradição negligente!

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  15. Cuidado a todos os que são bem intencionados.
    Estas palavras, de José Ribeiro e Castro, ajudam bem na compreensão da estratégia de André Ventura e do nosso conhecimento pessoal.
    Querer um país melhor, uma sociedade mais justa e mais fraterna, é um direito e uma uma necessidade sadia - um privilégio para o país ter pessoas assim. Mas a mudança, sadia, passa por confiar o seu voto a quem defende as barbaridades que tem proferido da boca para fora?!...
    Quem é contra o aborto, dfende a vida nas suas mais diversas dimensões. Infelizmente, não é o caso de André Ventura...

    O meu voto está definido. Prefiro votar num candidato "imperfeito" e dispôr-me, também eu,a ser agente de mudança, do que votar num candidato que estimula a ira, qye ifende, insulta e, claramente, não respeita a vida!

    Talvez fosse bom que, republucanos ou não, todos votássemos. Melhor ou pior, é este o nosso sistema, que apesar de tudo é democrático, e só pode melhorar com o nosso contributo. Por outro lado, talvez seja uma forma de equilibrarmos, em termos representativos (estas eleições presidenciais vão ter uma leitura de crescimento, ou não, partidário), as divesas forças e não permitir que os extremos cresçam.

    "O Chega é diferente. Não é bem um partido. É uma interjeição – como o nome. Procura ir ao encontro das zangas das pessoas, da frustração, indignação e irritação que se amontoaram. É um partido da ira. E a política – como sabemos – tem feito acumular demasiados sentimentos destes. André Ventura vai atrás disso. O modelo é o oportunismo. É um caçador de irritações. Onde avista um indignado ou revoltado, aí está ele: bramando, gesticulando, ameaçando, extremando. Sempre a manter alto os decibéis e as emoções, que o circo assim exige".
    José Ribeiro e Castro in Observador
    22 de Janeiro de 2021

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  16. Estou cada vez mais convencido que são estes "católicos" os 1os responsáveis pela situação no mundo: aborto, eutanásia, divórcio, drogas, pois preverem politicos "moderados" mas que agradam a Deus e ao diabo, do que os políticos "populistas" que apenas agradam a Deus. 1º foi como Trump, agora é com o Ventura. https://pt.aleteia.org/2021/01/18/joe-biden-nomeia-defensora-do-aborto-para-dirigir-acoes-humanitarias-dos-eua/?utm_campaign=NL_pt&utm_source=weekly_newsletter&utm_medium=mail&utm_content=NL_pt

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  17. A pergunta que voce devia fazer é esta, como é possível a partir de um "discurso de taberneiro" obter tantos votos!

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