Wednesday, 30 September 2020

Pecadores, mas não Hipócritas

Pe. Paul D. Scalia
Qual é a diferença entre um hipócrita e um pecador? São muito semelhantes. O hipócrita apresenta-se de uma forma e depois comporta-se de outra. O pecador escolhe, deliberadamente, aquilo que sabe que não devia escolher. Ambos sofrem de divisão interior. Na verdade, podemo-nos sentir como hipócritas quando pecamos, quando escolhemos o contrário daquilo em que acreditamos. Ainda assim, sentimos que existe uma diferença entre os dois. Intuímos correctamente que nem toda a gente que peca é, só por isso, um hipócrita.

A distinção encontra-se no seguinte. O hipócrita fez as pazes com a divisão que existe dentro dele; o pecador luta contra ela. É verdade que pode lutar mal, e perder mais vezes do que ganha, mas independentemente disso, continua a resistir a esta desintegração interior. O pecador arrepende-se e tenta conformar a sua vida à verdade. O hipócrita recusa-se a arrepender-se e, em vez disso, procura deturpar a realidade para se encaixar na sua forma de viver. Tornou-se, talvez sem o perceber, confortável com a sua divisão interior.

A diferença entre o hipócrita e o pecador explica porque é que reagimos de forma tão diferente quando confrontados por eles. Podemos ficar zangados ou frustrados com o estado pecaminoso de um homem, ou então podemos ter pena da sua fraqueza. Mas o hipócrita é diferente. Sentimos que ele sofre de uma fundamental desonestidade mais profunda. É perigoso de uma forma que o pecador não é. Enquanto que o pecador se desvia ocasionalmente do seu caminho (talvez até frequentemente), o hipócrita perdeu a bússola.

Esta é a diferença entre os dois filhos na parábola do Senhor do passado domingo (Mt. 21, 28-32). Enquanto que ambos falham, o primeiro é capaz de se arrepender e o segundo não. O pecado do primeiro é a sua rebeldia, o segundo já se tornou confortável na sua duplicidade. O primeiro é simplesmente um pecador, o segundo é um hipócrita.

Tal como em muitas outras parábolas, o Senhor dirige esta “aos chefes dos sacerdotes e do povo”. O ponto não é simplesmente que estes homens pecaram. Nosso Senhor faz questão de os distinguir dos pecadores, dos cobradores de impostos e das prostitutas, que entrarão antes deles no Reino dos Céus. Não, neles existe uma falha mais profunda do que o pecado, pior do que qualquer pecado em particular. São homens que se tornaram confortáveis com a divisão no seu seio, que trocaram a integridade pelo poder. São, como Jesus diz noutras partes dos Evangelhos, hipócritas.

Reagimos de forma visceral contra a hipocrisia precisamente porque sentimos o seu poder desintegrador da pessoa. A hipocrisia implícita nos escândalos eclesiais enfurece-nos mais do que os pecados propriamente ditos. Igualmente, a hipocrisia dos nossos famosos políticos pró-aborto é, de certa forma, pior do que qualquer pecado particular ou falha moral habitual. Tornaram-se tão confortáveis com esta sua desintegração interna que conseguem afirmar-se católicos ao mesmo tempo que defendem a causa do aborto.

O oposto da hipocrisia é a integridade – aquela qualidade que salvaguarda a unidade da pessoa. A integridade torna a pessoa inteira, em vez de uma fracção; garante que é completa e não dividida. O homem de integridade combinou e uniu – integrou – os vários aspectos da sua vida. O que ele crê, pensa, diz e faz está em sintonia. E embora a integridade não seja tecnicamente uma virtude é – ou pelo menos o desejo e o esforço de a alcançar – o que torna a virtude possível. E a virtude, por sua vez, ajuda a aprofundar essa integração.

Graças ao pecado original, todos experimentamos essa divisão e conflito entre o que sabemos ser bom e verdadeiro, por um lado, e o que desejamos e escolhemos por outro. “Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio (Rom. 7,15). Quando pecamos, exacerbamos essa divisão e arriscamo-nos a ceder à hipocrisia. Quando nos arrependemos encontramos a cura para essa divisão. “Simplex fac cor meum”, reza o salmista, (Ps. 86,12): torna o meu coração simples, completo e inteiro.

O mundo espera que os cristãos sejam, acima de tudo, homens e mulheres de integridade. Na verdade, quanto dano não foi causado à evangelização pela hipocrisia dos cristãos? Então como crescemos na integridade do coração?

Beato Fulton Sheen

Primeiro, pela devoção à verdade. Note bem: não apenas um interesse pela verdade, mas o desejo de nos conformarmos a ela; não apenas para conhecer, mas para responder à verdade. Afinal de contas, o hipócrita também sabe recitar verdades profundas, mas ele não se conforma a elas. São Tiago avisa-nos para não sermos o tipo de pessoa que considera a verdade interessante, mas não determinativa:

Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando-se a si mesmos.

Aquele que ouve a palavra, mas não a põe em prática, é semelhante a um homem que olha a sua face num espelho e, depois de olhar para si mesmo, sai e logo esquece a sua aparência. Mas o homem que observa atentamente a lei perfeita que traz a liberdade, e persevera na prática dessa lei, não esquecendo o que ouviu mas praticando-o, será feliz naquilo que fizer. (Tiago 1:22-25)

Ou, como diria o beato Fulton Sheen, “Se não conformares o teu comportamento às tuas crenças, acabarás por conformar as tuas crenças ao teu comportamento”.

Em segundo lugar está a devoção ao Sacramento da Reconciliação. A diferença entre o pecador e o hipócrita é que o pecador se arrepende. O nosso crescimento na integridade do coração requer não apenas uma visita ocasional ao confessionário, mas o alinhar da nossa vontade com a de Deus através da frequência desse sacramento. Na confissão não tentamos refazer a nossa realidade à nossa medida, mas tentamos conformar as nossas vidas à vontade de Deus.

Talvez a acusação mais comum que se faça contra os católicos (e contra os cristãos em geral) é de que somos hipócritas. É verdade que muitas vezes é uma acusação infundada. Todavia, vamos fazer todos os esforços para que, por mais que sejamos pecadores, não sejamos hipócritas.

 

O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 27 de setembro de 2020 em The Catholic Thing

© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

Wednesday, 23 September 2020

À Espera da “Primavera”

Stephen P. White
Quando o Papa João Paulo II anunciou um Grande Jubileu para assinalar a aurora do terceiro milénio cristão falou convictamente de uma “nova Primavera de vida cristã”. O jubileu prometia ser o ponto alto de um pontificado recheado de grandes feitos. O Papa tinha começado o seu pontificado exortando a Igreja: “Não tenhais medo!” Acabou o Grande Jubileu num tom semelhante, fazendo eco da ordem dada pelo Senhor aos seus discípulos: “Duc in altum!”, Fazei-vos ao largo! O Grande Jubileu acabou na Solenidade da Epifania, 2001.

Foram dias inesquecíveis.

No dia 6 de janeiro de 2002 – precisamente um ano depois de concluído o Grande Jubileu – a equipa Spotlight do “Boston Globe” publicou uma reportagem sobre um abusador em série de crianças que era também padre católico: o padre John Geoghan. Acontece que a arquidiocese sabia dos seus crimes. Não obstante, Geoghan foi transferido de paróquia em paróquia, deixando na sua esteira um conjunto de vidas arruinadas. A Grande Quaresma, para usar a frase do padre Richard John Neuhaus, tinha começado. De certa forma, ainda não acabou.

Entretanto deixámos de ouvir falar muito sobre novas primaveras.

Recentemente tenho dado por mim a pensar bastante sobre esta conjunção – a esperança do Grande Jubileu e a humilhação da crise de abusos sexuais – em parte por causa do podcast que tenho ajudado a produzir para o The Catholic Project, da Catholic University. Mas também porque este sentimento de declínio se tornou uma marca da nossa vida comum, não só na Igreja, mas também na vida política e cultural. O que era suposto ser uma nova Primavera tornou-se, passadas duas décadas, uma realidade saída dos livros de Narnia: sempre Inverno, nunca Natal.

Não é difícil encontrar narrativas de declínio nos nossos dias. Muitas pessoas parecem pensar que as coisas estão a piorar e querem acreditar que não são as únicas com essa opinião. Este sentimento de declínio ajuda a explicar, em parte, o apelo pelas correntes restauracionistas da nossa política (Make America Great Again não é nada mais que um slogan restauracionista). A pandemia, caso não tenha percebido, só está a exacerbar estas tendências.

Enquanto metáfora para o estado do nosso mundo, esta pandemia é quase demasiado óbvia. A Igreja – o mundo – parece estar a suster a respiração, esperando pelo que aí vem, sem saber bem o que dizer, com medo de tornar as coisas piores, mas também com medo de permanecer em silêncio. Sem saber se devia lutar contra a lenta asfixia ou permanecer calmo e dócil e aguentar o que aí vier.

O Cardeal Jean-Claude Hollerich, arcebispo de Luxemburgo, comentou recentemente que a pandemia poderá acelerar a secularização da Europa por uma década. Está preocupado que muitos católicos, pelo menos no seu Luxemburgo natal, apenas permaneceram na Igreja por razões “culturais” e que o encerramento das Igrejas durante a pandemia possa ter enfraquecido o que já era uma ligação ténue.


Aqui nos Estados Unidos há quem partilhe dessa preocupação. Em Milwaukee o arcebispo Jerome Listecki anunciou que ia levantar a dispensa geral de obrigação de missa dominical para as suas igrejas. A partir do passado fim-de-semana espera que os católicos da sua arquidiocese cumpram a sua obrigação de ir à missa. Faz sentido que, embora o bispo não saiba como vai ser o “novo normal” que chegará depois da pandemia, queira fazer tudo o que está ao seu alcance para garantir que os católicos vão à missa.

Claro que a maioria dos católicos nos Estados Unidos já não tinham paciência para ir à missa aos domingos antes da pandemia. A frequência da missa – tal como os casamentos, baptismos, crença na Presença Real e por aí fora – é apenas uma das métricas que mostra que a Igreja está em declínio, lento mas certo, há décadas.

A irrelevância política do Catolicismo é outro sinal da diminuição do impacto da Igreja na nossa vida comum. Digo “irrelevância política” não porque a Igreja não tenha nada a dizer sobre política, ou porque os votos dos católicos não interessam aos políticos – ela tem e eles interessam – mas porque as verdades da Fé têm manifestamente tão pouco a ver com a forma como milhões de católicos votam.

Lamentar a realidade é uma coisa. Não há falta de coisas a lamentar hoje em dia. Mas a desilusão por as coisas não terem acontecido como se esperava – como era “suposto” – também pode conduzir ao ressentimento. E a nossa cultura, a nossa política e a nossa Igreja estão cheios precisamente desse ressentimento.

Pode ser fácil comparar o mundo sombrio de hoje ao mundo mais solarengo de que nos lembramos e pensar que assim é que estávamos melhor. Mas vale a pena recordar que o ponto alto, em termos de prestígio e de influência, da Igreja Católica nos Estados Unidos – antes do “silly season” pós-conciliar, quando os católicos estavam social e politicamente unidos e as Missas estavam tão cheias como as escolas e os seminários católicos – coincidiu exactamente com as décadas de maior podridão e corrupção institucional na Igreja.

São Francisco de Sales escreveu que na vida espiritual devíamos buscar o Deus do consolo e não os consolos de Deus. Penso que na Igreja americana nos habituámos a procurar os frutos de uma Igreja saudável (e a lamentar a sua ausência) – muitas vocações, grande devoção entre os fiéis, casamentos e famílias sólidos, um ministério aos pobres florescente – sem nos preocuparmos em cuidar das obras espirituais que fazem com que a Igreja floresça.

Se queremos ver os rebentos da Primavera, então temos de trabalhar a terra e espalhar adubo no Outono.

“Não tenhais medo”. “Fazei-vos ao largo”. Estas não são palavras para um povo que chegou são e salvo a casa. Não são palavras para um povo que está a entrar num tempo de conforto e de consolação. São, sim, palavras para um povo fortalecido na fé e disposto a contar tudo o resto como perda. São, em resumo, palavras para o nosso tempo.

E são palavras que nos levarão rumo à Primavera… Independentemente da duração do Inverno.

 

Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Sexta-feira, 18 de Setembro de 2020)

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Wednesday, 16 September 2020

O Estilo de Vida Liberal é Caro, muito Caro

Randall Smith

Muitas pessoas partem do princípio de que uma sociedade “progressista” na sua visão dos valores morais seria naturalmente “progressista” em termos económicos, que quem acredita na distribuição mais equitativa dos bens acreditaria também em padrões mais permissivos de comportamento.

Não nego que exista essa percepção, mas a realidade acaba muitas vezes por ser o contrário daquilo que os jovens progressistas pensam. Aqueles que gostariam de assegurar uma distribuição mais equitativa da riqueza na economia e um maior respeito pelo ambiente estão de facto a exigir uma autodisciplina considerável, do género que normalmente não exigimos a quem vive um estilo de vida de libertinagem.

Pensam que é descabido pedir a um homem para disciplinar os seus apetites sexuais, mas ao mesmo tempo esperam que ele abdique do seu apetite por dinheiro, estatuto social e poder?

É estranho dizer por um lado que “não é necessário ter a disciplina para ser fiel à sua mulher e filhos”, mas por outro insistir que alguém deva sentir-se responsável perante toda a humanidade no que diz respeito à reciclagem das embalagens de plástico. Se um homem não consegue disciplinar os seus apetites ao ponto de ser fiel aos seus próprios filhos e à mulher a quem jurou fidelidade até à morte, diante de Deus, então porque haveríamos de pensar que seria suficientemente disciplinado para ser fiel às gerações que virão depois da sua morte? Não nos deve surpreender, portanto, que à medida que as sociedades se tornam moralmente mais “progressistas” vão acumulando mais dívidas para serem pagas pelas gerações futuras.

A laxidão que os “progressistas” apoiam no campo da moral pessoal é apenas mais uma variante do individualismo autónomo que pretendem combater no campo económico. E cada vez que se enfraquecem os elos sociais da sociedade, sobretudo aqueles que são desenvolvidos dentro da realidade altruísta que é o casamento e a família, resulta numa diminuição do capital social necessário para assegurar que as pessoas continuem dispostas a partilhar abundantemente com os outros sem medo de ficarem indigentes.

Quando se fomenta maiores níveis de confiança social as pessoas ficam mais dispostas a partilhar. Quando temem que mesmo as suas relações mais próximas são baseadas em nada mais do que o prazer ou a realização do outro, esta vontade esvai-se e formam-se muros de proteção. Quando isto acontece, a única maneira de garantir mesmo as formas mínimas de colaboração passa a ser através da coação governamental. É mesmo isso que queremos?

Se não quer o Governo a intrometer-se na sua vida privada, surpreendo-o verdadeiramente que o vizinho do lado não queira o Governo a intrometer-se nas suas decisões empresariais privadas? Se quer usar o poder coercivo do Governo para obrigar os médicos a praticar abortos, então fica mesmo espantado ao saber que o seu senhorio quer usar os poderes coercivos do Governo para o despejar quando não paga a renda?

E da mesma forma, se insiste que o Governo não tem nada que lhe dizer quanto é que deve pagar aos seus trabalhadores mas ao mesmo tempo quer usar os poderes coercivos do Governo para favorecer o seu negócio, então porque é que se surpreende ao ver que os “progressistas” resistem à intrusão do Governo para umas coisas e encorajam-na para outras?

Numa cultura em que a liberdade significa sobretudo liberdade de constrangimentos, liberdade para fazer o que quero e não a liberdade para me dedicar ao bem dos outros, rapidamente se torna claro para os jovens que a liberdade que lhes está a ser “vendida” todos os dias pelas elites culturais – a liberdade de autocriação, a liberdade de criar uma identidade através dos bens de consumo, a liberdade de ir em busca do que é excitante e de viver como as celebridades nos anúncios – é cara, muito cara.

A vida “de artista” em Nova Iorque é cara. A mansão é cara e os colégios da moda são caros. Há estudos que revelam que mais de um quarto das pessoas que ganham mais de 100,000 dólares por ano dizem que “mal conseguem aguentar” e que não têm dinheiro suficiente para as suas necessidades mais básicas. A liberdade da autocriação autónoma é cara; o estilo de vida das celebridades também.


Los Angeles e Nova Iorque são viveiros de eleitores de causas socialistas, mas estão longe de ser exemplos morais de igualdade de rendimentos. As pessoas que vivem em casas e apartamentos caros e que gastam dinheiro em bares e discotecas, mas que depois exigem que o Governo faça “mais pelos pobres” têm muito pouca credibilidade.

Saia desse apartamento caro, vá viver para uma cidade modesta e um bairro simples, envie os seus filhos para as escolas públicas locais ou para uma modesta escola católica que serve de facto os pobres, e aí talvez tenha alguma credibilidade. Caso contrário é uma fraude. Não pode exigir aos outros que abdiquem das coisas reles de que gostam enquanto fica com as coisas sofisticadas que lhe dão prazer a si.

Os adeptos do estilo de vida liberal nunca conseguirão alcançar a justiça social se usarem a sua preocupação pela justiça social como os fariseus usavam os seus símbolos religiosos, como sinal da sua própria presunção. “Alargam os seus filactérios e aumentam as franjas dos seus mantos”; “tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens”; quando vão dar dinheiro aos pobres mandam tocar as trombetas para serem respeitados pelos outros.

Demasiados americanos, sejam autoproclamados “liberais” ou “conservadores”, acreditam que aquilo que torna a América grande é o facto de os indivíduos poderem escolher o seu próprio conceito de bem, desligado das exigências e das necessidades dos outros e alcançá-lo como um direito divorciado de qualquer obrigação aos outros ou ao bem comum.

Tanto os “conservadores laissez-faire” como os “progressistas” são chamados a compreender que a América apenas será “grande” quando fizermos nossas as orações os versos, demasiadas vezes ignorados, do “America the Beautiful”:

 

América! América!

Deus corrija cada uma das tuas falhas,

Confirme a tua alma na autodisciplina,

A tua liberdade na lei!

 

América! América!

Que Deus refine o teu ouro

Até que todo o sucesso seja nobreza

E todo o lucro divino!

 

América! América!

Que Deus te dê a sua graça

Até que o lucro egoísta deixe de manchar

O estandarte dos livres!

 

 

Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 9 de Setembro de 2020)

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Wednesday, 9 September 2020

Anã Branca

Francis X. Maier
Tenho estado a pensar muito no inferno, ultimamente. Não porque me apeteça, mas porque nos tornámos peritos em replicar os seus modelos aqui e agora. Basta ver as notícias.

Quanto ao inferno da fé cristã, quem duvida da sua existência deve fazer um simples teste: Apaguem as luzes numa noite sem luar e ouçam, sozinhos, a declamação brilhante do “Inferno” de Dante, por Heathcote Williams.

É um bocado realístico de mais. Numa manhã solarenga de setembro a descrição de demónios coriáceos num poço de tormentas, independentemente da forma como for feita, pode parecer ridícula. Vivemos, afinal de contas, na era da ciência, com toda a sua confiança bem alimentada e desdém pela superstição. O “real”, dizem-nos, é aquilo que podemos medir e provar – isto apesar do pressuposto cegamente conveniente de que a realidade se adequa aos limites dos nossos sentidos e do tipo de material que conseguem coligir.

Mas no escuro, com os olhos voltados para a paisagem da alma, o território da verdadeira realidade – as coisas que de facto interessam no decurso dos nossos dias e as escolhas e consequências que nos formam – torna-se subitamente claro.

Como escreveu Dante:

 

No meio do caminho desta vida
eu me encontrei por uma selva obscura
porque a direita via era perdida.

Dante segue o seu guia, o poeta Virgílio, para um inferno que é assustadoramente persuasivo e perversamente correcto, sem o ruído do mundo moderno. Numa nação que atualmente se encontra ébria com ódios e ressentimentos, o leitor faz bem em pensar um pouco sobre o Canto VIII do Inferno, onde o Rio Estige, num fluxo sem fim de excremento e detritos, guarda as almas dos que foram condenados pela sua ira. Os irados esbracejam à superfície, mordendo e atacando-se uns aos outros; os soturnos afogam-se por baixo, engolindo a sua própria sujidade.

A ideia de que o pós-vida é um “lugar” está profundamente implementada na imaginação humana. E isso é compreensível. Vivemos num mundo físico com uma geografia mapeável. Os nossos corpos ensinam-nos o prazer e a dor. Então tendemos a imaginar o inferno como um lago de fogo; ou um Las Vegas extremamente maltrapilho, onde as bebidas são más, as dançarinas são feias e nunca ninguém ganha; ou então como descrito no círculo mais baixo e final do Inferno de Dante – um poço de gelo ferozmente frio.

A ficção de C.S. Lewis – especialmente “O Grande Divórcio” e o “Verozmente Teu”, mas também “Que Força Hedionda” – captura um pouco do que pode ser o inferno. Ou então talvez seja mais surpreendente, um aborrecimento eterno. No episódio “Um sítio simpático para visitar” do Twilight Zone um jogador, desesperadamente endividado, mas viciado na adrenalina do risco, morre e acorda num casino fabuloso. Está cheio de mulheres bonitas e tem todos os confortos e benesses. Mas não se pode ir nunca embora e, pior, nunca perde. Em “Hell’s Bells” do The Night Gallery, um roqueiro cínico e adepto de festa rija morre e é condenado. Mas a grande porta de fogo do inferno leva-o a uma sala de estar confortável, com um bom sofá, onde um casal de idosos está ansioso por lhe poder mostrar as fotografias das férias passadas no Havai. Para sempre.

Todas estas imagens podem ser tanto implausíveis como assustadoras ou divertidas. Todas podem conter alguma dose de verdade. Mas não têm em conta o cerne daquilo que o Inferno será, seja qual for a sua forma final, nem porque será tão severo o seu sofrimento.

O inferno será a total ausência de amor: um corte radical entre a alma e Deus que é Amor, a fonte do nosso sentido e da nossa identidade. A estrutura da “Divina Comédia”, de Dante, é inspirada em Santo Agostinho, que descreveu o nosso “peso” como nosso amor. O verdadeiro amor, o amor altruísta, é um fogo: sacrificial, generoso, sempre em crescendo; uma labareda que eleva a alma para Deus. É por isso que o círculo mais profundo no Inferno não é uma fornalha, mas um lago de gelo, mantido eternamente gelado pelo pecado do orgulho – o bater incessante, propositado, ártico e sem arrependimento das grandes asas de satanás.

Mas há uma questão que se coloca. Porque é que para nós pobres humanos, cujas vidas são apenas um pingo no oceano da eternidade, devemos sofrer no inferno para sempre? Para seres finitos a perspectiva de punição eterna, seja o que isso for, parece terrivelmente injusta. Mas é inteiramente justa. Deus não nos impõe o Inferno, são os condenados que o escolhem livremente.

Dante, visão de Deus

Os condenados, pelas suas acções e escolhas, tornam-se criaturas incapazes de viver de outra forma; criaturas que não suportam o Céu, que não conseguem sequer desejar o Céu, e que jamais lá se adaptariam. Se todos somos livres – e a nossa liberdade é um aspecto central da nossa dignidade especial, separando-nos de todas as outras criaturas – Deus não nos pode obrigar a ser aquilo que escolhemos livremente não ser. A misericórdia de Deus é infinita, mas requer o arrependimento, honestidade e humildade do pecador. São coisas que o pecador mais obstinado não dá. Logo, a “misericórdia”, neste caso, seria simplesmente outra palavra para a injustiça.

C.S. Lewis escreveu que enquanto o Céu é um “gosto adquirido”, ao longo de tempo, graças a uma certa forma de viver, não deixa de ser um espaço para homens e mulheres. Mas o inferno nunca foi feito para almas humanas e quem lá entra deixa de ser inteiramente humano, tornando-se uma cinza de restos humanos, queimados pela raiva, frustração, solidão e amor-próprio que devora; tal como uma estrela anã branca já não é uma estrela propriamente dita, mas apenas a sua casca, colapsada e autofágica – a memória murcha de uma estrela, mas com uma massa esmagadora e uma gravidade feroz que não permite que nada escape o seu apetite salvo a luz mais fraca.

Dante terminou a “Divina Comédia” com uma das linhas mais poderosas e belas da literatura ocidental, descrevendo Deus como “o amor que move o sol e outras estrelas”. Suponho que a lição aqui seja a seguinte. Seja qual for a fúria e a tormenta dos nossos tempos, o que determina o nosso destino é quem amamos, o que amamos e como amamos. Então temos de escolher. E os sábios escolhem bem.

 

Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 2 de setembro de 2020)

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Wednesday, 2 September 2020

Rezar pelos Agressores

David Warren

O polícia de Minneapolis que foi filmado a ajoelhar-se sobre o pescoço de um George Floyd prostrado chama-se Derek Chauvin. Este, e outros três agentes presentes naquele momento, já foram acusados de homicídio. Começam agora a surgir provas num sentido e noutro, mas as consequências já se fizeram sentir.

Arrisco dizer que todos os leitores já ouviram falar neste incidente e que também estão a par dos motins que ele desencadeou. Três meses mais tarde, há ainda problemas em muitas grandes cidades americanas e há bairros inteiros que são incendiados todas as noites, por este e outros incidentes que ocorreram entretanto.

Os activistas de esquerda, que já mostraram e bem ao que vêm (deixando um rasto de muitas vítimas inocentes), não dão qualquer sinal de abrandar. Porém, ainda só temos informação parcial sobre cada um dos eventos.

Mas hoje não pretendo analisar o contexto passado dos incidentes, nem as suas consequências. É evidente que qualquer ser humano decente se sentiu horrorizado com o vídeo original. Então porque é que grandes segmentos da população estão a ser condenados, como se fossem cúmplices do crime?

É demasiado fácil refutar os argumentos feitos pelos Antifa e militantes do Black Lives Matter, ou dos ideólogos dos media, mundo académico e política que estão a explorar a questão – quase sempre no mesmo sentido, mas no outro também. Aqui não me estou a debruçar sobre a “loucura das multidões”.

Antes, vou focar o evento original – o aparente homicídio de George Floyd – com base no pouco que já sabemos do que se passou. Houve um homicida e o homem que foi morto, tanto quanto se pôde ver; um agressor e a vítima. O sentido de injustiça é um motivador potente em qualquer sociedade humana.  

Com quem é que nos identificamos? Esta é precisamente a pergunta errada.

A nossa resposta pode bem explicar, ou mesmo determinar, onde nos posicionamos em relação à justiça. Neste caso devia ser simples, e para a maioria das pessoas que estão actualmente vivas, é de facto bastante simples. Só ouvi falar de uma pessoa que defendeu a actuação de Chauvin e mesmo esse pensou melhor e retratou-se mais tarde. Duvido que mesmo os acusados sintam que agiram de forma correcta.  

Mas aqui estou a usar o termo “identidade” de forma perigosa, como o mundo o faz, jogando o jogo dos esquerdistas. Nesse mundo identificamos de forma abstrata. Questões de raça, credo, cor e outras são trazidas à baila, quer sejam imediatamente relevantes ou não. É precisamente com este tipo de fogo que a “política da identidade” brinca.

Mas mais fundamentalmente, será que o leitor se identifica pessoalmente com Derek Chauvin? Consegue, mesmo nos seus pensamentos mais obscuros, imaginar-se a agir da mesma forma? Não no sentido “será que eu faria uma coisa destas?”, mas “porque não o faria?”

Não podemos saber o que aconteceu antes, e temos de assumir que poderia ter acontecido qualquer coisa. Mas o leitor alguma vez odiou tanto alguém que até pensou em matá-lo? E, pelo caminho, de o torturar?

Parto do princípio que, caso o tenha feito, terá abandonado o pensamento, talvez instantaneamente. Alguns de nós, porém, já cometeram homicídio no seu coração e se somos adultos devíamos saber que milhares, se não milhões, já passaram dos pensamentos aos actos. Os seres humanos já fizeram coisas tão sórdidas que já devíamos ter noção do que somos capazes.

Pensemos aqui um pouco nos santos, incluindo aqueles que perdoaram, antecipadamente, os seus carrascos. Enquanto cristãos, espero que não nos limitaríamos a dizer que tinham uma noção de justiça deficiente. Não se esqueceram simplesmente, no excitamento do momento, do mandamento de Moisés contra o derramamento de sangue inocente. Isso é o que fazem os assassinos, não as suas vítimas.

O acto verdadeiramente radical do perdão, elevado aqui ao seu expoente máximo, coloca-se em oposição à profundidade da culpa, que na nossa religião associamos ao Diabo. Pelo menos na nossa religião como ela era encarada até à pouco tempo.

Rezamos pelas vítimas, e ao nosso Salvador que foi, por definição, a vítima perfeita. Rezamos por vítimas muito menos perfeitas e, em momentos em que confundimos a justiça com a misericórdia, rezamos pelas vítimas porque achamos que é a coisa correcta a fazer. E todos os que rezaram, e rezam, pela alma de George Floyd fazem bem.

Mas o mesmo se aplica a todos os que rezaram, e rezam, por Derek Chauvin. Na verdade, ele poderá precisar mais das nossas orações, embora não possamos saber isso ao certo, uma vez que isso deve ser deixado ao juízo daquele que escrutina corações mais profundamente do que nós conhecemos o nosso próprio.

Penso aqui em como a perda da doutrina cristã, a começar com a doutrina do Pecado Original, nos debilitou.

Não é apenas o facto de não perdoarmos, é que cada vez mais somos incapazes do perdão. Até podemos compreender que os seres humanos são, em abstrato, capazes de males terríveis. Mas esquecemos que eu, enquanto ser humano, sou capaz de mal terrível.


E esquecendo isto perdemos tudo o que foi conquistado, a grande preço, através das gerações quando fomos cristianizados.

Podemos ver as consequências disto nas ruas; nas caras dos manifestantes; ou nas caras daqueles que ficam enfurecidos pelos manifestantes. É o que acontece quando a sociedade, no geral, perde a capacidade de perdoar. Passo a passo tornamo-nos mais, e não menos, capazes de actos monstruosos.

E pior, sentimo-nos bem com isso, como se tivesse sido feita justiça (“karma”). Na ausência da misericórdia, da magnanimidade, do perdão – as verdadeiras qualidades que ficam frequentemente para lá do alcance das palavras – a distinção entre homicida e vítima desaparece. A alma humana é reduzida a um fragmento no contexto de um malévolo “nós contra eles”.

Claro que a é preciso fazer-se justiça. Talvez alguns polícias deviam ir para a forca, ou para onde o consenso liberal decidir. Mas se procuramos apenas justiça, a justiça será a última coisa que alcançamos. E, como os cristãos de ontem bem sabiam, a história não termina no cadafalso.

 

David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na sexta-feira, 28 de Agosto de 2020 em The Catholic Thing)

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