Wednesday, 8 April 2020

A Pulga de Justiniano - Redux

Francis X. Maier
Algures no início do Século VI em África, uma bactéria que causava uma doença ligeira encontrou um hóspede novo e promissor: uma pulga. Através dessa pulga, e muitas outras, a bactéria sofre mutações até se tornar algo muito diferente. Migrando pelo Rio Nilo acima através de ratazanas, chegou aos celeiros de Alexandria. Depois, através de navios, atravessou para os mercados de Constantinopla, no ano 542.

No espaço de cinco meses, matou metade da população da capital do Império Bizantino. A praga descarrilou os esforços do Imperador Justiniano de restaurar o Império Romano do Ocidente. Paralisou os impérios bizantino e persa durante gerações e deixou-os maduros para a expansão islâmica no ano seguinte. Para todos os efeitos, pôs fim à Era da Antiguidade.

Pelo menos é essa a teoria de William Rosen no seu entusiasmante livro de 2007, sobre a primeira grande pandemia da Europa, “A Pulga de Justiniano”. O mesmo tema – o poder da doença para promover as mudanças civilizacionais – foi retomado no passado fim-de-semana (28 e 29 de Março), pelo historiador Frank Snowden, de Yale, num artigo do Wall Street Journal. Snowden concentrou-se sobretudo nos surtos da Peste Negra na Europa medieval e do renascimento. Cada uma destas pandemias ocorreu em culturas cristãs. Os que sobreviveram ficaram impressionados com a ideia de que podiam morrer a qualquer momento, sem aviso, por isso deviam preocupar-se com a alma imortal.

Isto conduziu à prática generalizada do “arrependimento, a autodisciplina e a oração”. A Igreja foi muito solicitada. Morreram incontáveis membros do clero, na assistência aos doentes. Estas perdas, por sua vez, moldariam o carácter e o rumo das igrejas por várias décadas.

A actual situação com o coronavírus é ao mesmo tempo diferente e semelhante às pandemias do passado. É diferente na taxa de mortalidade. A covid-19 é um assunto sério, muito perigoso para certas idades e grupos de risco, e muito contagioso. Mas a grande maioria das pessoas que ficarem infetadas vão recuperar. Isto deve-se também à capacidade das autoridades sanitárias para compreender e responder à crise.

Ao mesmo tempo, a crise é semelhante na medida em que lança uma sombra de mortalidade sobre culturas que se habituaram a décadas de autoconfiança, distrações e riqueza. Toda a gente sabe que um dia vai morrer, mas tornámo-nos especialistas em evitar pensar no assunto. Para as nações ricas e para as suas elites a festa acabou. Pelo menos por agora. 

Uma das coisas que torna esta crise diferente é a resposta das pessoas, em termos religiosos. No Irão, e noutros países muçulmanos, multidões forçaram a entrada nas mesquitas fechadas para poderem rezar. Em contraste, no Ocidente muitos cristãos expressaram a sua frustração com o encerramento das igrejas, mas na maioria aceitaram a prudência da decisão.

Hoje é fácil acompanhar a missa dominical online. O mesmo se aplica a retiros, reflecções e cursos católicos que preenchem o vazio deixado pelo culto. Muitos padres estão a ouvir confissões em ambientes cuidadosamente higienizados e regulados. A adoração eucarística, com distanciamento social apropriado, está a realizar-se durante várias horas por dia, todos os dias.

Mas o sentido de uma cultura cristã partilhada, com um vocabulário que dá sentido ao sofrimento, perdeu-se – e com ele a viragem comum para o “arrependimento, autocrítica e oração”. Enquanto nação desviámos os olhos durante décadas enquanto outros apagavam Deus do nosso vocabulário, do nosso pensamento e das instituições que sustentam a nossa vida pública. Agora que precisamos dele as pessoas já não têm as palavras nem a memória para o encontrar.

A lição mais comovente para os fiéis, durante esta crise, pode ser o sentido de perda e de depressão por que passam muitos dos nossos padres. O meu pároco ressuscitou uma comunidade moribunda no espaço de três anos. Deu-lhe novamente um sentido. A participação na missa voltou a ser uma alegria.

E ele é dos que têm sorte. Vem de uma família grande, com muitos parentes, não está, por isso, sozinho; mas alguns dos seus colegas não têm nada para além de uma casa paroquial vazia. Ainda assim, grande parte da sua vida enquanto pastor de uma comunidade viva está suspensa há semanas.

A escola paroquial está fechada. Os donativos que sustentavam a vida paroquial, e que tinham melhorado substancialmente, diminuíram, porque ninguém está nas igrejas. E alguns dos mais tímidos não voltarão quando a Igreja reabrir. Já estavam hesitantes, não os voltaremos a ver.

A “mudança civilizacional” provocada pelo coronavírus pode ser menos drástica que as pandemias do passado. Mas para os cristãos ocidentais clarifica as lealdades de forma dolorosa.

Pouco antes de morrer, o grande romancista católico francês Georges Bernanos escreveu que enquanto a fé e o amor cristãos “não desaparecerem do mundo, enquanto o mundo tiver a sua dose de santos, certas verdades podem ser esquecidas. Agora [essas verdades] estão a reemergir, como rochas na maré vazia. São a santidade e os santos que mantêm a vida interior sem a qual a humanidade se deve rebaixar ao ponto de extinção”.

A doença que nos cerca este ano, enquanto nos preparamos para a Semana Santa, é para nós um espelho das nossas verdadeiras preocupações e desejos. É uma oportunidade para rezar por todos os que sofrem com este vírus; de recordar e rezar pelos nossos padres; de nos apoiarmos como pudermos; e de valorizar o tempo precioso que temos com as pessoas de quem gostamos. E é ainda um convite a examinar a infecção de mundanidade que alastra nos nossos corações.

A vida, como somos agora forçados a recordar, é frágil. Ninguém nos pode obrigar a oferecer-nos sincera e totalmente a Deus, mas se alguma vez houve um tempo para o fazer, é agora.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 1 de abril de 2020)

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