Wednesday, 11 March 2020

A Carta da Nova Aliança da Virtude

Kent R. Hill
Em Dezembro de 2019 foi apresentada a Carta da NovaAliança da Virtude em Abu Dhabi. O documento pretende ser uma nova versão da Carta de Medina do Profeta Maomé, do Sétimo Século, que teve por objetivo levar a paz às tribos em guerra.

O objetivo desta nova Carta é de juntar judeus, cristãos, muçulmanos, representantes de outras religiões e outras pessoas de boa-vontade numa declaração comum de que as virtudes são essenciais para viver em paz.

A Carta é o resultado dos esforços do Shaykh Abdallah Bin Bayyah, uma autoridade respeitadíssima de jurisprudência islâmica e fundador e presidente do Fórum para a Promoção da Paz em Sociedades Islâmicas.

A Religious Freedom Institute, uma organização sem fins lucrativos sedeada em Washington DC, com o qual colaboro, desenvolveu um papel na formação do texto final da Carta. Entre as nossas contribuições conta-se uma afirmação dos direitos naturais, definidos como “direitos que antecedem o Estado e que são inerentes a cada ser humano por virtude da sua existência”. Mais, os direitos criados pelos governos “têm mais valor quando aplicados a todos, reflectindo as normas da dignidade e da justiça humana”. A Carta reconhece ainda a importância do Dignitatis Humanae.

Entre outras afirmações louváveis da Carta: “Todas as pessoas, independentemente das suas diversas raças, religiões, línguas e etnias, por virtude da alma divina que lhes foi insuflada, são dotadas de dignidade pelo seu Criador Omnipotente”. Citando o Alcorão: “Não há compulsão na religião” (Sura 2: 256); e, “O Estado tem a responsabilidade de proteger a liberdade religiosa, incluindo a diversidade de religiões, que garante a justiça e a igualdade entre todos os membros da sociedade”.

Na RFI debatemos muito se uma declaração destas nos pode ajudar a alcançar o nosso objectivo para esta e outras regiões, isto é, promover a liberdade religiosa no terreno. Muitos documentos semelhantes, inspirados no Islão, têm aparecido nos últimos anos, incluindo a Mensagem de Amã (2004), Uma Palavra em Comum (2007), a Declaração de Marraquexe (2016) e a Declaração de Fraternidade Humana (2019). Esta última foi assinada pelo Papa Francisco e por Ahmad al-Tayyeb, grande imã de Al-Azhar. Existe algum indício de que estas declarações fizeram alguma diferença nas regiões do mundo de maioria islâmica?

Infelizmente, as provas até agora não são muito encorajadoras. De acordo com a “World Watch List” da Open Doors, de 2019, mais de 80% dos vinte países que mais oprimem as religiões no mundo são de maioria muçulmana, a maioria delas no Médio Oriente. Mais de 70% dos piores cinquenta países no mundo são de maioria muçulmana.

A realidade no terreno que estas estatísticas representam pode levar até o maior defensor da liberdade religiosa a temer que declarações destas são, na melhor das hipóteses, exercícios de retórica, meras boas intenções. Os cínicos dizem que têm mesmo por objectivo enganar os incautos.

Então porque é que investimos tempo e energia com a Carta da Virtude? Foi por duas razões. A primeira é histórica e sugere que declarações não-vinculativas de princípios, quando apresentadas com autoridade e no momento certo, podem contribuir para o bem a longo prazo, mesmo que os seus autores sejam marcados por fraquezas profundas, ou aparentemente ingénuos. Um exemplo é a Declaração de Independência dos Estados Unidos, cuja audaz declaração de verdade religiosa – “todos os homens são criados iguais” – se tornou o motor e o sustento da democracia americana, não obstante a aparente hipocrisia de alguns dos seus arquitectos esclavagistas.

Ou ainda a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), que proclamou de forma não-vinculativa “a dignidade inerente… e os direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana”, incluindo o direito à liberdade religiosa para todos, e que foi assinada por nações que não tinham a menor intenção de os proteger, nem na altura, nem agora. Todavia, a DUDH mantém-se hoje como uma afirmação contra a tirania e os seus princípios são repetidos nos acordos não vinculativos de Helsínquia que contribuíram para a queda da União Soviética.  

Em segundo lugar, acreditamos que os esforços actuais para travar a violência religiosa e o terrorismo no Médio Oriente não têm funcionado. A ausência de liberdade religiosa nas nações de maioria muçulmana no Médio Oriente e no Sul da Ásia, está a alimentar uma catástrofe de proporções civilizacionais. O cristianismo está sob ataque nas terras em que nasceu e se desenvolveu. No Iraque poderá simplesmente desaparecer dentro de uma década. A pressão para as minorias não-muçulmanas abandonarem a região está a aumentar, e com ela desaparecerá a força estabilizadora do pluralismo religioso.

No fundo o que se passa é o seguinte: A solução para estes problemas não passa pela força militar americana, nem pelas noções ocidentais de constitucionalismo, assentes em premissas independentes da religião. Ambos estão condenados porque lhes falta credibilidade no contexto muçulmano. A única solução possível encontra-se nas próprias nações de maioria muçulmana e tem de ir beber às suas próprias premissas religiosas. É por isso que decidimos arriscar identificar e apoiar os líderes muçulmanos como Shaykh Bin Bayyah que acreditam que os princípios sagrados da sua fé suportam a liberdade religiosa e a cidadania plena para todos.

Claro que sabemos que os líderes muçulmanos que assinaram a Carta da Nova Aliança da Virtude estão longe de serem perfeitos. Tal como os fundadores dos Estados Unidos e de nós todos, nem sempre agem de acordo com o que professam. Mas acreditamos que compreenderão que é a credibilidade mundial do Islão que está em causa, bem como a possibilidade de convivência em paz, apesar das nossas profundas diferenças.

E claro que sabemos perfeitamente que as declarações não bastam. Se existe alguma esperança de sucesso, então as palavras devem ser destiladas nestas sociedades através de caminhos concretos para poderem chegar aos jovens muçulmanos em todo o mundo. E mais, os imãs e outros líderes religiosos muçulmanos devem abraçar a validade, e até mesmo a necessidade, de apoiar os princípios da Carta.

Para que as palavras da Carta da Nova Aliança da Virtude não acabem por ser apenas retórica estéril, é necessário, no final de contas, que os signatários e seus apoiantes estejam prontos para insistir que as palavras nobres se transformem em nobres actos.


Kent Hill é um dos co-fundadores da Religious Freedom Institute (RFI) e primeiro diretor executivo. Atualmente é o responsável da RFI pela Eurásia, Médio Oriente e Islão. Antes, serviu como vice-presidente sénior da World Vision e administrador assistente da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Intrenacional.


(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 5 de março de 2020)

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