Wednesday, 15 January 2020

Não Existe Cultura Secular

James Matthew Wilson
O Simon During formulou um argumento deprimente, mas convincente, sobre a relação entre religião e cultura na revista “The Chronicle of Higher Education”, uma referência no meio académico actual. Diz ele que a secularização do Ocidente moderno não implicou o abandono da religião, mas a sua redução a uma dimensão opcional da vida humana (uma ideia retirada do importante livro “A Secular Age”, de Charles Taylor). A despromoção da religião levou à promoção da cultura. A cultura, nos tempos modernos, tornou-se um novo termo-divino que dá coerência à civilização e à sociedade – uma espécie de substituto imanente para a transcendência da fé cristã. Como defendia Matthew Arnold, a cultura salvar-nos-á da anarquia.

Mas essa substituição está agora a ser desfeita, argumenta During, por uma segunda secularização. Tal como a autoridade da Igreja sofreu uma erosão por causa de vários eventos que convergiram numa ordem política secular, agora uma série de eventos, desde o neoliberalismo até ao feminismo e à política identitária, levou à rejeição dos cânones da cultura.

Já não é necessário ter uma certa apreciação pela Paixão de São Mateus, de Bach, ou da Eneida, de Virgílio, para se ser considerado um ser humano minimamente civilizado. Pelo contrário, esse tipo de conhecimento pode ser prejudicial. Mais vale passar o tempo a estudar análise de risco ou cibersegurança, dizem-nos os tecnocratas neoliberais. Ou então crítica pós-colonial de Virgílio ou, melhor ainda, deixar esse cadáver para trás em troca pelo estilo lírico de uma representante de povos não-ocidentais, ou um defensor da “pedagogia dos oprimidos”.  

Esta versão da história proposta por During pode não seguir as leis férreas da história, mas tem a sua própria dinâmica que é difícil de contrapor, ainda que não sejamos fãs. Mas eu gostaria de olhar apenas para a ligação que ele faz entre as secularizações religiosa e cultural e levantar algumas questões sobre a própria ideia de a cultura ser um “substituto” da religião. Na minha opinião as grandes obras culturais são antes expressões fortes da verdade do Cristianismo.

Não é por acaso que autores do início do Século XX, como Henri Massis, Charles Péguy, T.S. Elliot e Christopher Dawson tendiam a alternar entre a defesa do Cristianismo e da cultura, usando o termo nebuloso “Ocidente”. Eles compreendiam, e bem, que o Cristianismo transcende todas as realidades históricas, incluindo a cultura ocidental, e sabiam também que seria difícil, se não impossível, ter uma sem o outro.

Viam-no porque é, de uma forma muito particular, verdade. Devemos aos melhores filósofos pagãos as descrições mais convincentes e bem articuladas sobre o que significa ser humano. Os seres humanos são criaturas cuja alma aspira, por natureza, ao conhecimento da verdade por si só; criaturas que não desejam apenas a verdade, mas precisam de a contemplar. Assim nos sentimos preenchidos, felizes, e as nossas vidas transformam-se da vã perseguição da glória mundana para o descanso na eterna glória de tudo o que é, do próprio Ser.

Esta foi uma conquista cultural difícil, mas mais importantemente, foi uma conquista religiosa. A revelação de Deus a Israel e o envio do seu Filho ao mundo para proclamar a Boa Nova conduziu o mundo à plenitude predestinada da sua compreensão. A contemplação da verdade preenche-nos porque a Verdade é uma pessoa que nos criou para o conhecermos e amarmos. Encontrá-lo e viver nele não é apenas uma boa nova, é a única nova que permanece sempre boa.

A era moderna descrita por During e Taylor como sendo secular nunca abandonou verdadeiramente estas visões, embora as tenha truncado e despido dos seus verdadeiros sentidos. Reconhecia que existia algo distintivo e misterioso sobre as pessoas: Somos feitos para a transcendência. A era moderna simplesmente parou de especificar de que tipo de transcendência estava a falar e, pelo caminho, ofuscou a sua própria visão.

Sim, temos almas, dizem os modernos: elevamo-nos acima das nossas existências materiais, pelo menos de tempos a tempos, num ato de autoconsciência. As obras da alta cultura são tudo o que parecem ser – desde a filosofia de Kant às pinturas de Friedrich, à opera de Wagner ou à poesia de Rilke. Recordam à alma esquecida que é capaz de subir acima das leis mecânicas da natureza, ainda que apenas por instantes.

Enfim, a cultura moderna também pôde afirmar esta elevação, este êxtase, mas só como um tipo de patologia. Temos momentos de iluminação e depois afundamo-nos novamente na carne. “Tangendo-me de ti [espírito eterno] de volta à solidão”, como escreveu Keats. Eventualmente as pessoas compreenderam o esquema. Para quê preocupar-se com uma transcendência sem sentido? Parece demasiado etérea quando comparada com a transcendência mais funcional do dinheiro, através do qual asseguramos para nós mesmos uma imortalidade em miniatura. Já a elevação cultural parece uma indulgência narcisista quando comparada com a transcendência de perseguir bens políticos que poderão permanecer para além de nós.

Uma secularização sucede necessariamente à outra. A fundação da cultura, como disse frequentemente Joseph Pieper, é o cultus – o culto. Sem um claro sentido da nossa orientação para a contemplação de Deus, todas as obras do homem que parecem verdadeiras, boas, e belas começam a parecer primeiro meras distrações e finalmente ilusões.

Em “A Pessoa e o Bem Comum” Jacques Maritain argumenta que o ser humano é uma criatura ordenada para a comunhão imediata com Deus, mas que a personalidade revela ainda uma tendência para a comunhão com outros seres. O tesouro da cultura, como ele lhe chama, é simplesmente a irradiação da verdade e da beleza produzidos pela nossa tendência natural para nos unirmos a Deus e aos outros enquanto pessoas.

Se a Verdade não fosse uma pessoa com quem nos encontramos, não haveria uma experiência primordial da qual a cultura é uma espécie de fruto, nenhuma orientação para o sagrado, nenhuma expressão de nós mesmos na ordem “secular”. Mas pelo contrário, todos os nossos encontros com a obras culturais são pistas, reflexões, ecos sobre a natureza e o destino do homem. Escutem-nos.


James Matthew Wilson, é autor de oito livros, incluindo, entre os mais recentes, “The Hanging God (Angelico) and The Vision of the Soul: Truth, Goodness, and Beauty in the Western Tradition” (CUA). É professor associado de religião e literatura no departamento de Humanidades e Tradições Agostinianas na Universidade de Villanova e já foi editor de poesia para a revista Modern Age, e de series para a Colosseum Books, da Steubenville Press, na Franciscan University. Veja aqui a sua página na Amazon.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 15 de janeiro de 2020)

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