Wednesday, 11 December 2019

A Cruz por cima da Manjedoura

Stephen P. White
O meu pai era médico e quando eu era novo e pensava no que fazer com a vida perguntei-lhe o que é que gostava mais sobre a medicina. A resposta era tudo o que se podia esperar. Gostava de ajudar as pessoas. Gostava do equilíbrio entre a rotina e o desafio de poder resolver problemas. Tinha o privilégio de poder cuidar da família.

Quando lhe perguntei do que menos gostava esperava que me falasse das urgências a meio da noite, ou da burocratização da medicina. O facto de eu esperar essas respostas diz mais sobre mim do que sobre ele. Na verdade, não disse nada disso. A parte mais difícil do seu trabalho era, disse, saber que todos os seus pacientes iam morrer. E que tudo o que ele poderia esperar fazer – o que todos os médicos podiam esperar – era adiar o inevitável.

Pensei muito nisto quando o meu pai adoeceu com o cancro que acabaria por matá-lo. Foi muito reconfortante saber que o pai sabia o que sabia. A sua carreira médica tinha sido um memento mori de trinta anos. Claro que a inevitabilidade da morte não é razão para a resignação, menos ainda para cinismo ou desespero. E o cinismo e o desespero não eram características dele. Seria muito pobre médico se professasse indiferença para com a saúde por causa da mortalidade humana. O meu pai era um homem de grande e constante alegria.

Ele compreendia que a morte não é o fim da vida; é o caminho para casa. É a nossa possibilidade, para usar a expressão de C.S. Lewis, de ir mais alto e mais fundo. Precisamente porque o meu pai compreendia isto – e porque vivia desta forma, cuidava dos doentes desta forma e enfrentou a própria morte desta forma – tornou mais fácil para nós, por entre as nossas lágrimas, fazermos o mesmo. Esse é o maior dom que um pai pode dar.

Tenho pensado muito no meu pai ultimamente, em parte porque esta é uma época propícia às saudades da família, mas também porque estamos na altura do ano em que a Igreja nos fala sobre a morte e o fim de todas as coisas. E sobre a esperança de que tudo seja recomposto num mundo em que tanto está quebrado.

Mas este trabalho de recompor o que está quebrado pode parecer fútil. Veja-se estes três exemplos.

Algures nos próximos três meses, segundo nos dizem, o Vaticano vai divulgar as conclusões da sua investigação sobre Theodore McCarrick. Essas conclusões poderão, esperamos, explicar como é que foi possível McCarrick subir gradualmente pela hierarquia apesar dos constantes boatos sobre as suas tendências. Mas ainda que venhamos a saber tudo sobre a carreira de McCarrick e sobre quem partilha a culpa, há alguma esperança de que esse conhecimento venha a reparar os males que foram feitos ou reparar os danos que ele e outros causaram?

Advento, tempo de esperança
Na Virgínia Ocidental o bispo Mark Brennan informou o seu antecessor, o bispo Michael Bransfield, que espera que ele se retrate da grande quantidade de crimes e de pecados de que é acusado, restituindo o que deve ser restituído. Ainda que o faça por inteiro (e se não o fizer terá de responder perante o Fisco e Roma) isso apagará o mal todo que causou?

Uma notícia recente da Associated Press calcula que só em Nova Iorque, Nova Jérsia e na Califórnia uma série de processos novos relativos a casos antigos de abusos poderão levar a indemnizações de perto de quatro mil milhões de euros. Mas será que as feridas dos sobreviventes de abusos serão curadas com compensações monetárias para as suas justas queixas contra homens, muitos dos quais já morreram? Será que a Igreja pode pagar o suficiente em indemnizações ou fazer pedidos de desculpa suficientes para restaurar o mal profundo que foi feito aos corpos, almas e à fé daqueles que foram traídos?

Claro que a resposta a todas estas questões é “não”. Todos os nossos esforços de justiça são insuficientes. Todas as nossas tentativas de recompor o que foi quebrado pelo pecado são, no final de contas, desadequados. O melhor que podemos fazer com os nossos esforços – o melhor a que qualquer um de nós pode aspirar – não chega. Isso não significa que esses esforços sejam em vão, mas simplesmente que a nossa esperança não se encontra na nossa capacidade de sarar, reparar, restaurar ou reformar. Tudo isso é necessário, todos os nossos esforços, o nosso zelo e a nossa sabedoria são necessários. Mas temos de ter noção de que não chegam.

O Advento é um tempo de esperança porque acreditamos que aquele recompõe todas as coisas está a caminho. Ele é a nossa esperança. É ele quem cura tudo. Ele é o divino médico. A cura que Ele oferece é alcançada, literalmente, pela morte. Nesse sentido a manjedoura está sempre encimada por uma cruz – não como símbolo de morte iminente, não como espada de Dâmocles, mas como sinal da nossa salvação.

A morte chegará a todos. É o preço dos nossos pecados. Graças ao bebé de Belém, é também a nossa única esperança para a cura. Quando compreendermos isto – e se vivermos desta forma e enfrentarmos desta forma a nossa própria inadequação e estado decaído – ajudaremos outros a fazer o mesmo enquanto caminhamos neste Vale de Lágrimas. E participaremos assim na obra daquele que renova todas as coisas.

Não há melhor presente que esse.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 5 de dezembro de 2019)

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