Wednesday, 21 September 2016

Ideologia: O Coração da Matéria

Anthony Esolen
Tenho estado a pensar ultimamente que se a Democracia é a melhor forma de Governo alguma vez inventado, então porque é que na sua forma actual consegue fazer sobressair o pior que há em nós? Em teoria não devia ser assim. Teoricamente, nesta época eleitoral, devíamos estar envolvidos num debate nacional sobre as dificuldades que enfrentamos. O casamento está em crise e cada vez mais crianças crescem sem uma figura paternal. Que fizemos nós, não obstante as melhores intenções, para infligir sobre os mais vulneráveis tamanho sofrimento?

Como podemos arrepiar caminho? Os salários dos homens da classe operária mantêm-se estagnados há quarenta anos. O que fizemos nós, não obstante as melhores intenções, para os colocar sob tanta pressão? Porque seria errado encolher os ombros e dizer que a sua forma de vida é uma coisa do passado?

Porque é que formamos todos os anos milhões de miúdos no ensino secundário que não sabem nada sobre a herança literária, filosófica e religiosa e artística do ocidente? Como é que acabamos com a nossa dependência de petróleo estrangeiro, mantendo o nosso compromisso de limpar a água e o ar?

Um profissional da Irlanda, casado, pode esperar dez anos por autorização para imigrar para os Estados Unidos, até desistir – como aconteceu com o irmão do meu consultor financeiro. Mas milhões de pessoas estão cá ilegalmente. O que podemos fazer nestes casos que seja de acordo com a lei, com a equidade e a prudência mas também a misericórdia?

O Médio Oriente está a fritar no seu próprio petróleo e na sua encruzilhada de alianças, traições e ódios, enquanto o ressentimento islâmico para com os bem-sucedidos israelitas e o domínio cultural do Ocidente infecta os corações de jovens sedentos de guerra. O que é que devemos, ou podemos, fazer?

Recusamo-nos a ter estas discussões. A televisão tem alguma culpa, mas não é a única. Creio que o vazio que se encontra no local onde devia estar o coração do assunto tem um nome: ideologia.

A ideologia é um sucedâneo da religião. Quando deixamos de estar abertos ao divino é ela que corre a preencher o vazio. Um dos mitos do Iluminismo é de que a “religião” é tão violenta que deve ser mantida bem longe da política. Esse mito penetrou o cérebro de americanos inteligentes, como se constituísse prova contra uma das coisas mais evidentes da história, que nos mostra que, com a excepção notável do Islão, quase todas as guerras que os homens travaram não tiveram nada a ver com religião: Os homens lutam por terra, por glória, riqueza, medo, ambição, vingança, aventura e sede de sangue.

O perigo actual não é de que a religião informe a nossa política – é precisamente isso que a religião devia fazer, porque as nossas intuições sobre o divino devem dirigir o nosso tratamento do humano. Estou a falar aqui em traços gerais. O perigo agora é de que a religião seja obrigada a procurar refúgio nas catacumbas, enquanto a política, com os seus credos ideológicos, assume as prerrogativas da religião. É isso, e não a religião, que tem tornado os últimos dois séculos tão sangrentos.

"Mártir nas catacumbas"
A doença é fácil de diagnosticar e, salvo algum milagre, poderá ser impossível de tratar. Os sinais são estes: Os critérios de evidência são esquecidos – o ideólogo “sabe” aquilo que é impossível saber, como o estado da mente do Presidente Bush quando concluiu que o Iraque possuía armas perigosas ou os elementos necessários para as fazer. O ideólogo atribui aos actos dos seus opositores as piores motivações possíveis, dizendo por exemplo que o Presidente Obama propôs o seu sistema de saúde sabendo perfeitamente que ia falhar.

O ideólogo diz que os acidentes são na verdade devidos a astúcia maquiavélica e que os erros de juízo se devem à estupidez completa, sem perceber que os dois atributos se anulam mutuamente. O ideólogo não é aquele que acredita que tem razão, é sim o homem que já não consegue imaginar que as outras pessoas podem não pensar como ele sem estarem embrenhados em maldade. Não pára para pensar que ele próprio já pensou como eles.

O ideólogo é o preconceituoso perfeito, que não consegue compreender, imaginar ou apreciar o universo moral do seu opositor, mas cujo próprio universo é unidimensional, como uma caricatura.

O ideólogo está isento de pecado. Na medida em que possui as opiniões “certas”, tem rédea livre para fazer as coisas mais vergonhosas aos outros. É um difamador, um cobarde, um bully. Sente-se justo enquanto faz tudo para que o seu opositor seja despedido. Não perdoa, porque não sente que precisa de ser perdoado. Para ele, o cumprimento de todos os ditames ideológicos corresponde à graça salvífica de Deus.

Até aqui tenho-me estado a referir-me ao ideólogo como masculino, mas o feminismo também tornou as mulheres particularmente vulneráveis a um mal que historicamente afligia muito mais os homens. Por mais difícil que seja para um homem conversar com outro homem com o qual está em desacordo, como uma mulher é impossível porque o feminismo embrenha-se de tal forma no seu sentido de auto-estima, que em todo o caso nunca é muito elevado para quem não coloca Deus e família no centro da sua existência, por mais que se apresente altivamente ao mundo.

A grande maioria dos esforços de limitar a liberdade de expressão e de associação nas nossas universidades vem de ideólogas femininas, que de tão sôfregas não param para pensar que aquilo que estão a demonstrar verdadeiramente é que não deviam estar nas universidades.

A ideologia é impaciente, maldosa, invejosa, vaidosa; arrogante, egoísta, irascível; acredita no pior, regozija na iniquidade; espuma contra a verdade, não tolera nada; impaciente, não tem fé nem esperança verdadeira em Deus.

Quando o ideólogo era criança, acolhia o mundo com o deslumbramento de uma criança. Mas agora que envelheceu na ideologia, pôs de lado as coisas de criança. Então via a verdade de forma obscura, como que através de um vidro, mas agora vive na luz ofuscante e crua da ideologia, e nessa luz cada face, seja humana seja divina, é obliterada. Por isso para o ideólogo restam apenas estas três coisas: esperança no futuro, ambição desmedida e ódio. E a mais característica destas é o ódio.


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. 

(Publicado pela primeira vez na Terça-feira, 17 de Setembro de 2016 em The Catholic Thing)

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