Wednesday, 24 February 2016

Um Homem para os Nossos Tempos

David Warren
Não é preciso ser católico para manter a sanidade mental, mas ajuda. Tenho pensado muito nisso desde que soube da morte de Antonin Scalia.

Muito antes de me converter ao catolicismo já o admirava, e muito daquilo que eu admirava tinha a ver com a sua formação religiosa. Era uma pessoa segura de si mesma, ancorada de uma forma que excluía a arrogância. Sabia o que estava correcto e o que estava errado. Não podia ser intimidado.

Claro que tudo isto é possível sem ser católico. Já conheci protestantes que possuíam estas qualidades e achei-os geralmente generosos – livres de intolerâncias sectárias ou, de outra perspectiva, abertos à verdade e ao conhecimento da herança cristã. Modestos, justos, santos, queridos, boa gente.

Nos meus tempos de jornalista tive a honra de entrevistar líderes religiosos desde o Grão-sheikh do Al-Azhar, no Cairo, ao Supremo Patriarca dos Sangha, na Tailândia e também eles me pareceram sólidos, seguros, ancorados numa ordem moral que procede de um Amor que é tudo menos fofinho.

Também já conheci católicos severos e de mente fechada, sem amor e cruéis. A Palavra torna-se meras palavras quando se lhe retira o espírito; e palavras podem ser usadas para o mal quando a fé que as sustenta é trocada por outra coisa.

Sei que corro o risco de parecer um liberal. Deus bem sabe que não o sou. Nem estou a propor uma “folga ecuménica” do chamamento divino para o campo de batalha na luta contra Satanás. Estou simplesmente a afirmar que os homens são formados ou deformados em tradições que podem ser boas ou más e que abordar um homem bom implica respeitar as suas boas tradições.

Scalia entendia isto. Ele tinha noção que a América tinha sido fundada sobre valores protestantes e que a Constituição americana que ele defendia era, na sua natureza, uma coisa bela mas finita, que o tribunal em que se encontrava não era a Rota Romana.

Muitos dos seus amigos católicos mais eruditos discutiam com ele – sempre da forma mais agradável, tanto quanto sei – sobre a questão do “direito natural” no qual essa constituição “positiva” assenta. Em público, contudo, Scalia não tocava esse assunto. Na sua mente americana havia uma separação muito clara entre Igreja e Estado e ele não era nem político nem filósofo.

O melhor que ele podia fazer era servir o tribunal, aplicando a lei da forma como estava escrita. Ele nem o entendia como sendo um Tribunal Constitucional (tal como existem em muitos países na Europa), era simplesmente o mais alto tribunal de recurso nos Estados Unidos, uma última defesa contra os erros judiciais dos tribunais menores. Esta defesa não podia ser dominada por uma agenda.

Por exemplo, enquanto católico ele opunha-se profundamente ao aborto. A sua mulher Maureen, mãe de nove filhos, desempenhou um papel activo e incansável na luta contra este horror monstruoso, que clama aos Céus por justiça. Scalia foi criticado mais do que uma vez pelas actividades privadas da sua mulher, com a sugestão de que se devia recusar – talvez juntamente com todos os outros católicos do tribunal – de qualquer caso com implicações morais.

Tratava-se de uma injustiça ridícula. A posição de Scalia era a de um advogado. Não existe qualquer “direito da mulher ao aborto” na Constituição americana. O caso Roe v. Wade inseriu-a lá, de forma fantasiosa, e ao fazê-lo arrogou à judiciária um poder inconfundivelmente legislativo. Enquanto advogado e mais tarde juiz, Scalia nunca se opôs a algo por razões puramente morais, nunca invocava qualquer argumento que não fosse a lei, tal como aparece escrita.

O padre Paul Scalia faz a homilia na missa fúnebre do seu pai Antonin. 
Ver sobretudo a partir de 2'30"

Se a América quisesse ter aborto, que tivesse; se quisesse ter casamento homossexual e “eutanásia” ou qualquer outro mal, que tivesse, desde que por actos legais produzidos aos níveis estatais ou federal. Estas coisas podiam até ser incluídas na Constituição através da passagem formal de uma emenda. Mas enquanto não fossem, não podiam ser impostas por advogados. Os direitos eram-no na lei e não através de apelos a abstracções, e isso valia para todos os tribunais.

Eis, por isso, o paradoxo: Scalia, enquanto advogado, evitava cuidadosamente qualquer referência a códigos religiosos, qualquer interpretação de um anterior “direito natural” – apesar de ser um católico praticante. Os seus adversários “liberais”, porém, faziam-no de forma negligente, lendo na Constituição “direitos” que nunca lá tinham sido escritos.

São eles, e não Scalia, que podem ser vistos como defensores de um qualquer “direito natural” – embora estejamos a falar de um conceito inerentemente fátuo e que muda ao sabor dos tempos.

Tal como Scalia avisou, quando se envereda por esse caminho passa a valer tudo. Uma vez que ficou estabelecido que advogados em altos cargos podiam reescrever leis consoante os seus caprichos – tal como aconteceu em Roe v. Wade – deixou de haver quaisquer limites. Tinha-se feito à lei americana algo comparável com o que seria feito aos bebés americanos.

Antonin Scalia
São Tomás Moro adoptou uma posição semelhante à de Scalia no que diz respeito às leis inglesas quando foi Chanceler. Alguns leitores poderão recordar-se da sua posição, parafraseada na peça “Um Homem para Todas as Horas” em resposta “reformador” Roper – um idealista que propunha ceifar todas as leis que via como obstáculos ao que imaginava ser a justiça perfeita:

“Ai sim? E quando a última lei fosse abrogada e o Demónio se virasse contra ti – onde te esconderias, Roper, estando todas as leis espezinhadas? Se este país está semeado grossamente com leis de costa a costa – leis dos homens e não de Deus – e se tu as cortas – e quem mais senão tu? – pensas mesmo que te aguentarias de pé diante dos ventos que então soprariam? Sim, eu daria o benefício da lei ao Diabo, para minha própria protecção”.

Descansa em Paz, Nino Scalia. Ele não tinha de ser católico para defender tão nobremente a sua posição. Mas ajudou.


David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 19 de Fevereiro de 2016 em The Catholic Thing)

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