Wednesday, 20 January 2016

Duas Caras na Multidão

Randall Smith
Tinha acabado de tirar os olhos de uma das caras quando vislumbrei a outra. A primeira era a cara de um pobre senhor camponês (“Estudo para o Retrato de um Velho”) pintado pelo grande artista norueguês Edvard Munch quase duas décadas antes do seu trabalho mais famoso, “O Grito”.

Tive o privilégio de estar a visitar a fantástica exposição sobre Munch e Van Gogh no Museu Van Gogh em Amesterdão com a minha mulher e um grande amigo. Uma das coisas que ressalta logo sobre os primeiros trabalhos de ambos estes grandes artistas é o seu interesse pelas vidas e caras de simples camponeses, como aquele que tinha acabado de ver.

Estudo para o retrato de um velho
Mas quando me voltei do quadro do pobre camponês os meus olhos não repousaram sobre a famosa cara angustiada de “O Grito” – isso ficaria para mais tarde. Em vez disso vi uma cara ainda mais espantosa, tendo em conta onde me encontrava. Era a cara pura e simples de um adolescente com trissomia XXI, a observar aquelas pinturas com admiração e espanto, tal como nós, num país onde muitas pessoas teriam partido do princípio que ele simplesmente não tinha suficiente “qualidade de vida” para existir.

Diante de mim, a poucos quilómetros da casa onde Anne Frank se escondeu dos seus algozes por ser considerada “geneticamente impura”, estava um jovem cuja alegada “impureza genética” tem levado ao extermínio daqueles que partilham da sua condição.

Todos sabemos que as crianças com trissomia XXI têm aquela cara distintiva. É mais fácil de identificar do que o judaísmo. Quantas das pessoas artisticamente sensíveis que passeavam por aquele museu holandês, agiriam com base no desejo de não ter olhar para aquela cara ou outras como ela? Cerca de 92% das crianças com trissomia XXI são actualmente abortadas. Há quem diga que, ao ritmo actual, a Dinamarca, por exemplo, poderá ver a sua última criança com trissomia XXI até ao ano 2030.

O que é que estes estetas holandeses estariam a pensar quando viam esta simples cara entre eles? O que é que os terá preparado para esta visão numa nação que há muito perdeu a sua ligação a uma cultura que interessa – uma cultura que costumava valorizar de forma especial, na sua maior arte, as vidas dos pobres e desapossados?

"genéticamente impura?"
Mas aquilo que mais me interessava naquele momento era o que estaria a passar pela cabeça do meu amigo, uma vez que ambos vimos o rapaz ao mesmo tempo. É que o meu amigo tem um filho com trissomia XXI e, como qualquer pai, eu sabia que ele seria ainda mais sensível a tudo isto e protectivo desta criança. Ele teria reparado naqueles olhares desconfortáveis e condenatórios milhares de vezes e sabia que naquele instante só queria gritar.

O Munch descreveu da seguinte forma a inspiração para “O Grito”:
Estava a caminhar na rua com dois amigos – o sol estava a pôr-se – de repente o céu ficou cor de sangue. Parei, sentindo-me exausto, e encostei-me à cerca. Havia sangue e línguas de fogo por cima do fjord azul e preto e da cidade. Os meus amigos continuaram a andar e eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti um grito infinito a passar pela natureza.

O desenho original e as subsequentes pinturas que Munch produziu com base nele são geralmente interpretados como representações da angústia e da ansiedade do mundo moderno, despido de todas as suas amarras à fé e à tradição.

Houve uma altura em que as pessoas pensavam que podiam substituir a “religião” com a espiritualidade das artes. Pensar-se-ia que o holocausto tinha acabado com essa tolice. Havia grandes obras de arte expostas no Rijksmuseum em Amesterdão, a uns meros 15 minutos a pé de onde a Anne Frank e a sua família estavam escondidos num anexo secreto durante os anos escuros da Segunda Guerra Mundial. E agora damos por nós novamente a defender as vidas dos “geneticamente impuros” contra as selvajarias da elite bárbara que se apresenta como grande guardiã da cultura.

Quem não conhece a história está condenado a repeti-la. E demasiadas vezes até aqueles que conhecem a história recusam-se a deixar que ela sirva de aviso ou de juízo. “Afinal de contas, não somos nazis”, dizem as pessoas, como se não fosse expectável que as nossas aspirações fossem um bocadinho mais altas que isso.

Quando começarmos a ver “grandes artistas” a procurar novamente a face de Cristo nas caras dos pobres e nas caras das crianças com trissomia XXI em vez de gastar toda a energia na sua libido sexual, teremos uma cultura a que vale a pena prestar novamente atenção. Até lá será mais da mesma masturbação artística auto-indulgente.

O Grito, de Edvard Munch
leiloado por 120 milhões
Uma cultura deve ser julgada com base no valor que dá aos membros mais fracos da sua sociedade e da forma como cuida deles, e não no valor que gasta nas suas pinturas e nos seus museus. A nossa é uma cultura em que a versão de pastel sobre madeira de 1895 deste quadro foi vendido no Sotheby’s de Londres no dia 2 de Maio de 2012 por um recorde de 120 milhões de dólares. Mas é também aquela em que 92% das crianças com trissomia XXI são abortadas. Não, não somos nazis. Mas daqui a 100 anos nenhuma pessoa decente olhará para o nosso tempo com um sentido de orgulho.

Se o Papa Francisco está a pensar montar um “hospital de campanha” no meio de uma batalha furiosa, então não precisa de ir mais longe do que os campos da morte da Europa e da América. É tão inútil perguntar a uma cultura seriamente ferida se tem as compensações de carbono em ordem como é perguntar a um ferido grave no campo de batalha se tem problemas de colesterol. Protejam primeiro as nossas crianças. Depois podemos falar de tudo o resto.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 6 de Janeiro de 2016 em The Catholic Thing)

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