Tuesday, 30 December 2014

Uma Criança que Dorme

Anthony Esolen
Herodes ouviu falar do Menino Jesus e ele e todos os seus conselheiros ficaram preocupados. Pediu aos reis magos que encontrassem o rapaz e que lhe trouxessem a informação, para que ele pudesse ir louvá-lo. A homenagem que Herodes queria prestar era matá-lo. Quando os magos, avisados em sonhos, se desviaram de Jerusalém no seu caminho de volta para o Oriente, Herodes fez aquilo que fazia melhor: eliminou a oposição – ou pelo menos tentou.

Os meninos das proximidades de Belém não passavam de coisas para Herodes, obstáculos aos seus planos dinásticos. Se há uma árvore no caminho da estrada que queres construir, corta-se e tira-se as raízes. Para ti ela não tem vida. É apenas uma negação da tua vontade.

Todas as representações deste massacre que tenho visto são de uma acção dramática e terrível. Soldados brutos e exageradamente musculados dão à espada, às vezes matando as mães e os filhos em conjunto. Mas nunca vi uma pintura que corresponda melhor à nossa situação actual.

Imagino a cena da seguinte maneira. O quarto pouco iluminado e quieto. Nem o pai nem a mãe estão presentes. Talvez estejam nos campos, a trabalhar. A luz de uma janela ilumina o rosto de um homem, um soldado. Está com a testa franzida. Tem uma espada ao seu lado. Diante de si, numa cama, dorme um rapazinho.

Peço-vos que imaginem esse bebé. Gabriel Marcel diz que a visão de qualquer pessoa a dormir coloca-nos na presença de um mistério: A sensação de uma presença que não pode ser reduzida a proposições ou a utilidade. Isto é especialmente verdade em relação a crianças: “Do ponto de vista da actividade física… a criança que dorme está completamente desprotegida e parece estar inteiramente à nossa mercê; desse ponto de vista é possível fazermos o que quisermos dela. Mas do ponto de vista do mistério, podemos dizer que é precisamente por estar totalmente desprotegida, totalmente à nossa mercê, que é também invulnerável e sagrada.” (em “The Mystery of Being: Presence as a Mystery”).

Vemos os caracóis soltos na sua testa. Vemos os seus olhos fechados – o que é que observam? Vemos os seus lábios cerrados, o ritmo lento da respiração.

As pessoas que se mantêm seguramente no armazém das coisas não sentem esta presença. Não sentimos um mistério no transmissor 2451, nem na prateleira 32B. Quando substituímos um nome por um número a maior parte do nosso trabalho destruidor está feito. Se apenas vemos instrumentos, não teremos escrúpulos em usá-los como quisermos. A característica importante de uma peça numa máquina é o facto de não ter individualidade. Pode ser substituída por outra qualquer. É suposto ser substituída por outra qualquer.

Mas se o soldado pausar o tempo suficiente para contemplar o rapaz a dormir, terá de se endurecer contra o sentido natural e humano de santidade e mistério. Para tratar o rapaz como uma coisa, deve primeiro tornar-se uma coisa, uma ferramenta de Herodes, uma peça na maquinaria herodiana.



Para tratar a criança que dorme como uma irritação de que se deve livrar, deve reconhecer a ausência de valor de todas as coisas pequenas; a semente na terra, o pintainho no seu ninho, a batida do coração, o soldado num exército, a Judeia no Império Romano, esse pequeno império à escala da história do mundo, o mundo enquanto grão de areia no universo. Deve negar o valor da própria criação.

Imaginem outra criança a dormir. Está a chuchar no dedo. Está enrolado, os joelhos encaixados debaixo do queixo. O rabo inocentemente à mostra. A imagem está desfocada, porque ele está seguro no seio quente da sua mãe. A enfermeira na clínica vê, mas ao mesmo tempo não vê, o menino.

Imaginem outra cena. O rapaz é vivaço e meio tresloucado. Tem o cabelo colado à testa. Esteve a nadar no lago. Emerge, a escorrer água e a rir. O “amigo”, mais velho, observa, calculando e planeando.

Outra cena. Os rapazes e as raparigas estão nos seus lugares, na sala de aulas. Estão a pensar em todo o género de coisas. Um deles está a pensar no jogo que vai ter logo à noite. Uma das raparigas pensa em visitar a prima, a caminho de casa. Duas delas falam sobre as aulas de equitação. Outro limita-se a sonhar acordado, enquanto olha pela janela.

A professora está diante deles. Tem a testa franzida, o olhar carregado. Tem nas mãos um livro. Quando os rapazes e as raparigas saírem da escola, nessa tarde, já saberão o que é – preencha o espaço.

“Passa-se alguma coisa filho?” O rapaz tem-se comportado de modo estranho toda a tarde. Ele olha-a com um olhar estranho, depois vira a cara. “Não, nada”.

Marcel diz: “Não pode haver a menor dúvida de que a mais forte e irrefutável marca de pura barbárie que podemos imaginar seria a recusa em reconhecer esta misteriosa invulnerabilidade”.

Herodes e Herodíade aparecem-nos sob muitas formas. São hedonistas, para quem as crianças são obstáculos irritantes na busca de prazer. São utilitários, ferramentas que avaliam a utilidade de outras ferramentas. São estatistas, cuja ambição não é governar homens, mas gerir formigas. São médicos e enfermeiras que se recusam a ver a criança. São todos os assassinos da inocência. São os soldados à entrada da casa.

Doce Jesus, salva-nos de nós mesmos.


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Os seus mais recentes livros são:  Reflections on the Christian Life: How Our Story Is God’s Story e Ten Ways to Destroy the Imagination of Your Child.

(Publicado pela primeira vez na Terça-feira,30 de Dezembro de 2014 em The Catholic Thing)

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