Ouve-se dizer que
Portugal vive uma crise de natalidade. É verdade, ou exagero?
Suponho que não será exagero. Este ano nasceram 82 mil
crianças, mais umas dezenas, num país onde tradicionalmente nasciam
regularmente acima de 100 mil crianças. Portugal nunca foi um país de explosão
demográfica, contrariamente ao que muitas vezes se ouve dizer. Sempre foi um
país que tirando alguns momentos na sua história, em que teve explosão
demográfica, mas são momentos muito circunscritos do ponto de vista histórico,
regularmente no resto dos tempos teve um comportamento muito estável, de
reprodução de gerações.
Actualmente verificamos que não há esta substituição, de uma
forma muito preocupante porque estão a nascer cada vez menos crianças, o que
significa um envelhecimento acelerado do país, combinado com o aumento da
esperança média de vida, por isso temos aqui um problema que combinado torna-se
bastante preocupante.
Os sucessivos
governos prometem medidas de incentivo à natalidade, porque é que não parecem
ter resultados?
Por várias razões. Porque é muito fácil falar.se de família
e questões de natalidade e outras conexas, só de um ponto de vista
proclamatório, isto é, indiciar, referir e com isso as pessoas ficam de alguma
forma confortadas, porque uma parte fundamental da sua vida, que é a sua
situação familiar está citada no discurso politico, por isso é qualquer coisa
que é fácil acenar. Mas depois o que se verifica na prática é que não há uma
real vontade política de intervir nesta matéria e não há vontade política por
razões ideológicas, naturalmente, mas também por uma manifesta falta de visão
estratégica do desenvolvimento de um país.
Outros países que olharam com atenção para as suas
tendências demográficas, iniciaram, atempadamente, políticas que conduziram a
uma recuperação lenta do crescimento demográfico. Estas recuperações levam
sempre várias décadas. Citando o caso francês, foi mais que uma década, foi
praticamente um século, as políticas que de um ponto de vista integrado
procuraram promover o bem-estar e a segurança dos cidadãos no sentido de criar
condições que levassem a ter uma predisposição a terem filhos levou um século a
ter efeito.
Nos países nórdicos as políticas combinadas de várias áreas,
levaram 15 a 20 anos a surtir efeitos. Significa que há uma visão estratégica
do desenvolvimento de um país, porque olha não só para a quebra da natalidade,
como uma tendência, mas também para outra tendência que é o aumento da
esperança média de vida, de uma população que começa a modificar-se nas suas
características e relativamente ao qual é necessário pensar-se com tempo,
porque a predisposição para ter filhos não resulta de alterações conjunturais,
radica no mais profundo da consciência humana e por isso tem a ver com uma
sedimentação longa, maturada dessa mesma predisposição.
Falou da necessidade
de planear a longo prazo, há outras formas de socialmente tentar mudar a
mentalidade dos casais e levá-los a querer ter mais filhos do que apenas os um
ou dois que planeiam habitualmente?
Não acredito que seja possível... não se trata só de uma
mentalidade, trata-se de uma convicção. E a convicção e as predisposições
profundas das pessoas como é esta de se ter um filho, tem a ver com uma
combinação complexa de factores, entre as quais, para além da conhecida matriz
antropológica, de nos reproduzirmos porque se não nos reproduzirmos
desaparecemos, mas para que isto aconteça tem de haver condições securitárias,
para que aconteça. As espécies que se sentem ameaçadas não se reproduzem, isto
é uma aprendizagem que se faz da natureza. Somos uma espécie que pertence a
este espaço extraordinário que é o planeta e como espécie animal que somos
temos essas mesmas características. Temos de nos sentir em segurança para nos
reproduzirmos. É por isso que eu falava há pouco nesta visão estratégica, são
medidas combinadas que contribuem para favorecer um ambiente em que as pessoas
se sentem seguras para tomar as suas decisões. Neste caso concreto que estamos
aqui a analisar, uma decisão tão profunda e complexa como é ter um filho.
Uma das vozes que se
ouve muito nesta discussão é da Igreja. A Igreja Católica pede generosidade na
abertura à vida. Existe na prática alguma diferença entre os católicos
praticantes e outras secções da sociedade nesta questão?
Não sei. Teria de fazer uma análise aprofundada da
informação estatística. Se não estou a fazer uma observação superficial, porque
todos conhecemos alguns casais que são católicos e têm bastantes filhos, mas
também conheço outros casais que não são católicos e também têm mais de dois
filhos. Portanto não estou em condições, não tenho informação suficiente para
lhe responder rapidamente a esta questão.
Não são só condições materiais que levam as pessoas a ter
filhos, há outras condições, toda uma formação, um trabalho educativo do ponto
de vista da relação. Há cerca de um mês, se não me engano, foram publicados os
resultados de um estudo sobre correlações entre a literacia dos portugueses e a
sua predisposição para preocupações de natureza social, para envolvimento em
militâncias activas, na defesa da justiça e outras questões fundamentais.
Curiosamente este estudo revelava que à medida que aumenta a literacia,
reduz-se esta predisposição, o que naturalmente nos faz pensar como é
necessário reflectir sobre o modelo educativo, ou o modelo de desenvolvimento
humano das pessoas, porque leva-nos a pensar que esta dimensão social, de
participação, não está suficientemente trabalhada e constituir família é uma
dimensão de relação, em que a pessoa tem de ter uma capacidade de se relacionar
dando e novo exercendo essa generosidade que referi há pouco.
Portanto temos aqui vários fenómenos combinados que têm de
ser intervencionados se quisermos ver uma modificação deste comportamento para
a natalidade. Naturalmente, e como colocava, quando falamos de católicos
falamos de pessoas que têm um conjunto de valores informadores das suas opções
individuais. Mas as pessoas vivem em contextos concretos, e portanto os
princípios informadores, no exercício do que referiu, da paternidade e
maternidade responsável, e daquilo que concorre e contribui para o que se pensa
ser a maternidade e paternidade responsável, encontra fortes condicionantes
depois nas envolventes da comunidade onde as pessoas se encontram.
Fala de uma
estratégia a longo prazo, mas claro que isto começa com medidas imediatas,
quanto mais cedo melhor. Se lhe perguntassem a si, quais as medidas que deviam
ser tomadas pelo Governo no imediato?
Tem toda a razão no que diz, não se pode esperar nem mais um
dia para se começar a tomar medidas concretas nesta área. Tendo-se claro a
consciência que os seus efeitos vão ser a prazo. Diria que há vários blocos.
Aquele que me vem logo à cabeça é a área fiscal. Diria que é a área em que as
famílias são mais fortemente penalizadas. Há alguns dias ouvi um debate na
rádio sobre esta questão e um senhor ligou para participar e disse que tinha
cinco ou seis filhos e teve de trabalhar mais para dar uma vida com qualidade
aos filhos. Como trabalhou mais ganhou mais, como ganhou mais, subiu de escalão
no IRS. Eu diria que isto significa uma penalização das famílias.
As famílias, numa perspectiva de formulação de política, não
têm de ser premiadas pelas opções que tomam na sua vida privada, isto é do
número de filhos que querem ter, mas não podem ser penalizadas e o que acontece
agora em Portugal é uma forte penalização do ponto de vista fiscal das
famílias.
Falando desta questão, que é financeira, há todo um conjunto
de questões que estão correlacionadas, que têm a ver com as deduções, mas têm
também a ver com custos objectivos, porque há uma aplicação um pouco estranha,
que nunca consegui compreender... É que se entendem as famílias numa lógica de
economia de escala. Curiosamente as pessoas por viverem em contexto familiar
valem substancialmente menos do que se fossem indivíduos singulares. De facto
sabemos que duas pessoas custam menos, gastam menos vivendo juntas do que
sozinhas, mas isso não nos permite fazer uma dedução abusiva de uma dita
economia de escala ao grupo familiar, supondo que uma criança pode chegar a
valer 0,5% de um adulto. Isto é completamente inaceitável. Estou a dar um
exemplo extremo, porque não é situação sistemática, mas o custo de uma criança
é um custo individual, intrínseco. Duas crianças custam duas crianças, não
custam um bocadinho, uma não custa um bocadinho da outra porque cada uma tem as
suas necessidades individuais.
Cito aqui coisas que são muito referenciadas, como a taxa da
água, os custos de educação, etc. porque não é aqui aplicado um conceito de
capitação, portanto da mesma forma que há penalização do ponto de vista fiscal,
por causa dos salários, o rendimento mensal fica mais alto porque as famílias
trabalham mais para ter maior capacidade para fazer face às suas necessidades,
também gastam mais e este seu maior consumo é de novo penalizado como se
tratasse de um uso exagerado de meios, quando se trata de um uso somado de
muitas pessoas que coabitam.
Diria também que na área do trabalho, apesar de termos feito
grandes avanços, na área das licenças parentais e de outro tipo de licenças,
penso que se tem de pensar mais ainda sobre a questão da flexibilização do
trabalho, de formas alternativas, de licenças combinadas, não penalizadoras de
percursos profissionais. Em Portugal tivemos, e seria errado não o dizer,
progressos significativos nesta matéria. Tem a ver com um enorme avanço que se
processou na área da igualdade entre mulheres e homens, com um impacto
significativo em toda a organização do trabalho, nomeadamente no que tem a ver
com questões de conciliação da vida profissional e familiar.
Mas estamos ainda muito longe de ter as condições
necessárias para, em liberdade e segurança, sem terem medo de perder o
trabalho, ou sem terem medo de perder possibilidade de progressão na carreira,
que as pessoas tenham de fazer as suas opções, em períodos determinados
trabalharem menos horas, porque têm crianças mais pequenas, e uma multiplicidade
muito grande de alternativas.
Também posso referir a área da habitação, que é uma área
fatal do ponto de vista da organização familiar. É uma das grandes
condicionantes. A habitação em Portugal é caríssima. O acesso à habitação é
muito difícil. Não estou a falar agora na situação de crise em que nos
encontramos, porque é tradicionalmente uma das maiores penalizações, ou um dos
maiores obstáculos que as famílias em constituição encontram, o acesso à
habitação. É muito caro, custa muito dinheiro, e quando as pessoas constituem
família são muito novas e portanto os seus salários são mais baixos e por isso
a habitação a que conseguem aceder é uma habitação mais pequena, onde caberá um
filho.
Todo o conjunto de obstáculos que são colocados à mudança de
habitação, quer em termos de alugar, quer em adquirir uma nova habitação, são
de tal forma difíceis e constrangedores, que muitas das vezes as famílias que
gostariam, como em grande parte dos inquéritos que vemos sobre este assunto as
pessoas gostariam de ter mais filhos, perante o conjunto de dificuldades que
encontram, desistem.
Diria também que há uma outra questão, a perspectiva
universal, isto é, as políticas que têm a ver com a promoção de condições para
as famílias, e aqui insiro este objectivo actual que é a criação de condições
que promovam a natalidade, tem de ser de carácter universal, para todas as
famílias.
As políticas que promovem condições favoráveis para que as
famílias se organizem, se organizem em liberdade, em estabilidade, segurança e
que tenham a dimensão que entendem que devam ter, são para todas as famílias,
não são políticas de compensação de rendimentos, não são políticas
assistencialistas, esse é um outro pacote de políticas. É completamente errado
pensar-se que, quando olhamos para esta área de intervenção, olharmos
unicamente para o grupo dos que menos têm.
O apelo que se faz é a toda uma comunidade. Naturalmente as
políticas devem ser diferenciadas em relação aos rendimentos e às necessidades,
mas nenhuma pode ser excluída porque nenhuma é dispensável nesta construção
colectiva da comunidade.