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Jónatas Pires com alguns dos "fãs" mais especiais
do Tudo é Vaidade II |
Transcrição integral da entrevista ao músico Jónatas Pires e a Alfredo Abreu, da Serve the City - Lisboa, a propósito do projecto "Tudo é Vaidade II". Podem ver e ouvir a reportagem aqui.
Qual a história por
detrás do disco Tudo é Vaidade?
Divido a autoria das letras com o Kohelet, que escreveu o
Ecclesiastes, porque fui basicamente inspirar-me no que ele tinha escrito e
essas canções são basicamente um retratamento do Eclesiastes do princípio ao
fim.
A ideia nasceu no verão de 2011 quando me pediram que
fizesse uma canção para cada dia do acampamento da Juventude Baptista
Portuguesa, onde íamos estudar o livro de Eclesiastes. Depois surgiu a ideia de
pegar nas músicas e fazer um disco e pareceu-nos bem usar o disco para servir
um propósito maior que o deleite auditivo. Tínhamos conhecimento de um projecto
social que existe em Rabo de Peixe, na Ilha de São Miguel, que consiste em
fornecer senhas de alimentação a crianças que não têm acesso a mais de uma
refeição completa por dia.
Todo o percurso foi feito ao longo de alguns meses. O disco
saiu, começou a ser vendido directamente às pessoas, e pela internet, e
conseguimos enviar cerca de 6500 euros para lá o que resulta em hoje em dia
estarem cerca de 52 crianças a serem apoiadas diariamente com refeições pagas e
mais algumas ajudas a famílias e crianças fora de Rabo de Peixe.
Essa estrutura que
ajuda as crianças em Rabo de Peixe já existia?
Sim, o projecto começou com dois professores colocados em
Rabo de Peixe. Depois de perceberem das necessidades gritantes que havia entre
os alunos começaram a pagar do próprio bolso as senhas a alguns alunos. Depois
foram apelando a amigos e foi-se espalhando, e como foi crescendo foi chegando
mais dinheiro e criaram uma estrutura.
Ainda são professores mas continuam a colaborar com pessoas
de lá, incluindo os técnicos do Rendimento Social de Inserção, para identificar
os casos de maior necessidade. Os apoios são dados directamente às crianças, os
cartões da escola são carregados e com isso eles podem comer.
Quando existe uma necessidade mais imediata, por exemplo
para uma família que de repente se vê sem nada, sem comida para uma semana, já
aconteceu terem de dar uma ajuda directa mais pontual.
Agora surgiu a ideia
de fazer um novo disco mas com um enfoque diferente.
Sim. Não nos desligámos do anterior projecto, as pessoas
podem continuar a contribuir e a comprar o disco, mas também, desta vez, eu ao
experimentar ter ido a um jantar comunitário do Serve The City, senti logo uma
vontade muito forte de os poder ajudar da mesma forma, e de escrever canções
que tivessem a ver com as pessoas que frequentam esses jantares, e o que elas
passam.
Foi sempre com uma perspectiva de poder, através da música e
das palavras, as pessoas que atravessam um inverno quase permanente, poderem
encontrar pelo menos um cheiro de primavera naquelas canções.
Abordei o Alfredo e eles foram muito generosos na forma como
acolheram a ideia.
Alfredo, o que é o
projecto Serve the City?
Somos uma organização inspirada por Cristo mas aberta a
todos. É uma organização de inspiração cristã mas que congrega pessoas de todas
as convicções para servir a cidade. Esta ideia de serviço é também muito ligada
a Cristo, que se apresentava como aquele que vinha servir e não para ser
servido.
O nosso objectivo é dar alguma coisa da nossa vida para
tornar a vida dos outros melhor, e mobilizamos pessoas para projectos de
voluntariado. O primeiro grande projecto que tivemos foi este, os jantares
comunitários, que inicialmente era destinado exclusivamente a sem-abrigo, mas
começámos a descobrir que na comunidade das pessoas que vivem na rua há não só
pessoas sem-abrigo, há imigrantes ilegais, toxicodependentes, idosos isolados,
muita gente isolada, que vão às carrinhas das diversas organizações buscar
algum tipo de alimento.
Foi para eles que criámos este jantar comunitário, que
acontece, por enquanto, de quinze em quinze dias e que serve cerca de 250
refeições. O objectivo não é a comida, porque àquela hora em vários lugares de
Lisboa há comida disponível para as pessoas da rua. O nosso objectivo é criar
um espaço seguro, confortável, onde as pessoas que estão na rua ou que vivem na
margem, que se sentem excluídas da sociedade, possam sentar-se à mesa com os
nossos voluntários para partilhar uma refeição durante duas horas, o seu
percurso de vida, simplesmente partilharem o que lhes vai no coração.
Temos parceiros católicos, a Comunidade Vida e Paz,
budistas, o Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, protestantes, o Exército de
Salvação, a Câmara de Lisboa, a Associação Conversa Amiga, que penso que não
tem nenhuma filiação religiosa. Todas estas organizações que já fazem um
acompanhamento das pessoas da rua depois vêm sentar-se à mesa com as pessoas
que habitualmente servem nos vários lugares da cidade, e aí sim desenvolvem-se
relações mais profundas, permitem conversas que vão além do circunstancial. O
objectivo não é dar comida às pessoas, é darem-lhes a oportunidade de se
sentirem pessoas.
Esta ajuda que poderá
vir, se o projecto correr bem, é importante para o vosso projecto…
Sim, porque servimos uma refeição, que tem custos. E não
imputamos esses custos aos nossos voluntários, nem às pessoas que vêm da rua.
Alguém tem de pagar os jantares, não há jantares grátis. Andamos sempre à
procura de patrocinadores, portanto este apoio do projecto do Jónatas
permite-nos libertar tempo que gastamos à procura de recursos para aumentar a
nossa resposta de acompanhamento das pessoas que estão na rua.
Para isto avançar é
preciso atingir um objectivo de financiamento.
[Jónatas] Numa primeira fase de recolha conseguimos juntar
os fundos necessários para pagar a gravação do disco e com a ajuda muito
generosa da Valentim de Carvalho gravámos lá o álbum, que está agora na fase
pós-produção, e o que nos falta é o dinheiro para fazer as cópias físicas do
disco, porque acreditamos que a música e os discos ainda é algo que pode ser
partilhado de forma física, o que é mais significativo do que simplesmente enviar
um ficheiro informático.
Os valores são baixos, porque queremos que seja o mais
acessível possível, e mesmo assim possa reverter lucro para os jantares, e
neste momento estamos nesta fase. Temos até dia 15 para atingir o nosso alvo.
Mas mesmo que cheguemos aos 100%, encorajamos toda a gente a financiar-nos
porque temos também outros objectivos.
Estive há dias a tocar alguns temas para alguns utentes da
Comunidade Vida e Paz e foi uma experiência fantástica a maneira como as
canções encontraram aquelas pessoas, e como elas se encontraram nas canções.
Temos um sonho que queremos concretizar de poder oferecer o disco em leitores
mp3 a pilhas aos nossos convidados da rua, para que lhes sirva de uma companhia
quando eles estiverem em alturas de solidão.
Não se trata apenas de pôr comida nos estômagos das pessoas
mas conseguir chegar aos corações a ajudar a transformar vidas e construir uma
cidade melhor e mais solidária, especialmente tendo em conta o tempo que
vivemos.
Como é que se pode
contribuir?
Quem conhece a plataforma
PPL.com.pt,
o nosso está na lista de projectos. Mas é mais fácil ir a
www.tudoevaidade.com e tem lá as
informações todas. Vão tendo actualizações regulares, tem as ligações para a
página da recolha de fundos e também tem as ligações para o disco anterior, a
fase 1 do projecto. Também estamos no
Facebook.com/tudoevaidade
Tudo é vaidade vem da
abertura de Eclesiastes, o segundo disco também é inspirado em Eclesiastes?
O segundo é mais abrangente. As imagens mais presentes neste
segundo disco são de facto o pão, mesas vazias e mesas cheias, e também a
questão da solidão, daquele sentimento de, apesar de estarmos rodeados de
imensa coisa, incluindo família e emprego, podemos sentir que não temos nada.
Apela a uma redescoberta daquilo que é verdadeiramente importante, o “ter e não
ter”.
Não tem uma inspiração tão focada como o primeiro disco, mas
sendo mais abrangente também houve coisas que fui buscar a Job, outras a
Salmos. Job é um livro espectacular, para escrever sobre sofrimento. Há uma
música só sobre a parábola do Senhor que dá um grande banquete e todos os
convidados recusam. A música diz que “Há uma grande festa, que nunca termina,
onde todos cantam e ninguém desafina.” Esse é o espírito dos jantares do Serve
the City.
Musicalmente tenho convidados muito especiais. O Samuel
Úria, a Celina da Piedade, que tem um disco a solo lindíssimo, ela toca com o
Rodrigo Leão também. Uma cantora portuguesa que canta com os Wray Gunn, a Selma
Uamusse. E depois muitos amigos meus, pessoas que decidiram abrir o seu coração sem pedir nada em troca e que abrilhantam o CD de uma forma muito especial.
Nota-se aqui que todo
este projecto está muito marcado pela tua fé pessoal. De que maneira alimenta o
teu trabalho?
Não só este projecto. Eu tento que toda a minha música,
mesmo que não tenha a palavra Cristo, ou Deus, que naquilo que eu crio
transpareça a minha cosmovisão. É importante para mim que assim seja, já que
vou falar é melhor que tenha alguma coisa a dizer, mas que possa ser algo que
leve as pessoas a interpretar aquilo à sua maneira e descodificar aquilo que lá
está. Não são músicas sobre o nada, não são um vazio intelectual ou lírico.
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Um sem-abrigo de Lisboa |
Tentei imaginar muito daquilo porque passam as pessoas que
frequentam os jantares. Na Comunidade Vida e Paz, uma música que falava de
sepulcros, um senhor que tinha sido coveiro muitos anos e que disse que se
identificava com aquilo. Essa é a minha maior felicidade, que as pessoas possam
pegar nas canções e sentir que aquilo lhes diz alguma coisa.
Contaste com o apoio
dos Pontos Negros?
Claro, eles participam todos. O Silas, o teclista, é quem
faz a parte gráfica. Apesar de ser um projecto de âmbito diferente a nossa
amizade vai muito para além da música. Aliás, a amizade é algo que é partilhado
pelas pessoas que fazem este disco e isso é uma coisa que transparece.
Já chegaste ao ponto
em que consegues viver da música?
Já vivi, mas agora não vivo. Estou muito bem como estou. Não
é por ter um emprego, de que gosto muito, e dedicar-me a isto não a full-time,
que o faço com menos empenho ou dedicação. Quando eu falei com o Alfredo nem
estava neste emprego, mas a premissa de nunca tirarmos nada financeiramente
deste disco mantém-se e há-de se manter sempre, mesmo que não esteja a ganhar
nada. Isto é algo que eu sinto que devo fazer, independentemente daquela que
for a minha situação.
Alfredo, o seu
trabalho no Serve The City também é voluntário?
Eu sou voluntário, não ganho nada com isto. Temos apenas uma
pessoa que é paga porque entre dois jantares há uma enorme quantidade de
trabalho a fazer, reuniões a marcar, contactos, follow-up que se faz com
pessoas que vêm jantar connosco. Em quase dois anos já envolvemos quase 2500
voluntários, desde gestores de grandes grupos económicos a pessoas
desempregadas e até alguns sem-abrigo. Misturamos tudo, o objectivo é mesmo
esse, quando uma pessoa entra na sala de jantar não percebe que é o voluntário
nem quem é o sem-abrigo.