Thursday, 13 September 2012

Mais notas romanas


Biblioteca do Vaticano, onde há um decreto perpétuo
que ameaça de excomunhão quem roubar livros...
Temos tido dias muito cheios aqui em Roma. Ontem entre trabalho e o texto sobre a visita do Papa ao Líbano que fiz para o blogue, acabei por dormir só umas cinco horas, mas tem valido bem a pena.

Ontem foi dia de visita à Signatura Apostólica, o mais alto tribunal da Santa Sé, onde fomos recebidos pelo Cardeal Burke. Foi interessante vê-lo descrever os processos judiciais do Vaticano, e a existência de tribunais, como uma forma de garantir aos fiéis o acesso aos seus direitos. Facilmente imaginamos estas instituições como sendo unicamente repressivas, mas a lógica não é essa, ou pelo menos não deveria ser.

Da parte da manhã fomos à audiência-geral do Papa. Estávamos num óptimo lugar, muito perto da frente, mas é preciso chegar cedo e tudo leva bastante tempo. Depois a catequese do Papa é em Italiano, e por isso difícil de seguir. É mais animado quando se começa a dizer os nomes dos grupos presentes e as pessoas gritam, ou cantam para mostrar onde estão. Ontem estavam presentes três bandas e por isso tivemos direito a muita música.

Cardeal Burke
O almoço foi de trabalho, com a presença de dois vaticanistas que nos explicaram as particularidades de cobrir a Santa Sé. Segundo eles, é muito difícil conseguir fontes entre a Cúria Romana e, quando finalmente se consegue, é ainda mais difícil conseguir uma entrevista “on the record”. Ambos são americanos e falaram de uma questão que também é muito interessante. Uma vez que é tão difícil arranjar informação fidedigna, muitas vezes os órgãos internacionais vão buscar a sua informação à imprensa italiana. Mas o estilo da imprensa italiana nada tem a ver com o estilo anglo-saxónico, ou mesmo o português. É muito mais comum publicar boatos, histórias sem fonte identificada etc. e se não forem verdadeiras, ao fim de poucos dias ninguém quer saber. Por isso os riscos para o resto do mundo de confiar na imprensa italiana são enormes, porque em muitos países não se pode escrever ou publicar dessa forma.

Ainda tive tempo ontem para visitar o museu judaico de Roma, que é muito giro e tem duas sinagogas belíssimas, mas infelizmente, por razões de segurança, é completamente proibido tirar fotografias.

Hoje: China, África e amor...
Penso que esta Quinta-feira foi, até agora, um dos dias mais interessantes.

Pe. Sergio Sergianni, especialista na China
O dia começou com uma conferência sobre a Igreja na China, dada por um padre italiano que trabalha na Propaganda Fidei e viveu 25 anos na China (especificamente Taiwan e Hong Kong, mas com muitas visitas à China e muitos contactos). Foi tudo “off the record”, mas serviu muito bem para compreender o que se passa naquele país em relação à Igreja e as relações entre a igreja oficial, controlada pelo Estado, e a Igreja subterrânea, que é fiel ao Papa.

Depois tivemos uma conferência do Arcebispo Fisichella, sobre o pensamento do Papa. Fisichella é um excelente orador, com um raciocínio extraordinariamente bem organizado e claro.

Dois pontos principais a reter. Primeiro, o Papa terá dito que o seu trabalho teológico tem por base o Concílio, e o primeiro documento do Concílio trata da liturgia. Por isso a liturgia, ou seja, a forma correcta de adorar a Deus, está no centro das preocupações do Papa, o que é evidente para quem o tem acompanhado desde que foi eleito.

Em segundo lugar, a centralidade do conceito de amor, sendo que o amor é a essência da teologia cristã, e a necessidade de perceber de que tipo de amor falam os cristãos quando usam o termo, que provavelmente não é o mesmo sentido que a sociedade hoje lhe dá.

Fisichella explicou também, a certo ponto, a diferença entre ética e valores. Enquanto os valores são próprios de cada religião, sendo por isso subjectivos, a ética é independente das religiões, porque depende exclusivamente da razão. Por isso pode-se falar de uma ética universal, porque a razão é igual para todos. Isto tem obviamente uma ligação ao conceito, caro aos cristãos mas que antecede o Cristianismo, da Lei Natural.

Faço aqui um parêntesis para dizer que uma das coisas que me tem impressionado no contacto próximo com estas figuras é a sua fé. Pode parecer uma parvoíce, porque estamos a falar de bispos e padres, mas quando estamos fora ficamos facilmente com a ideia de que em Roma tudo se resume a politiquices e intrigas. Há muito disso, claro, mas os homens que temos conhecido (sim, só homens...) são todos pessoas de grande fé e que estão claramente apaixonadas por Jesus Cristo e pela Igreja e isso é, para um católico, reconfortante.

Padre Fortunatus ao centro, com dois africanos que
estão a participar no curso também.
Termino com aquele que foi um dos pontos mais altos do dia. O padre Fortunatus Nwachukwu, um nigeriano que é responsável pelo departamento do protocolo do Vaticano mas que nos veio falar sobre a Igreja em África. O nome dele pode ser complicado de pronunciar, mas fixem-no, porque acredito mesmo que ele há-de ir muito longe...

Falou de muita coisa, mas retive especialmente um tom de preocupação com a Igreja africana. Explicou que em África, no início do Cristianismo, havia uma Igreja fortíssima e muito rica no Norte de África, em Cartago. Mas mesmo essa Igreja tão vibrante, não resistiu ao Islão.

É verdade que o Cristianismo está em forte crescimento em África, disse, mas o Islão também. E se Cartago não resistiu ao Islão naquele época, como é que a Igreja africana, tão dividida por tribalismos, vai resistir? Disse que era um optimista, mas que isso o deixava preocupado.

Contou-nos uma história curiosa para ilustrar isso. Diz que uma vez comentou com um amigo nigeriano, padre também, que sonhava com uma Igreja na Nigéria em que um bispo do Norte pudesse ir para uma dioceses do Sul, e vice-versa. Nisso o amigo interrompeu-o e disse: “Fortunatus, para com essa conversa. Estás a sugerir que a minha tribo pudesse ter como bispo um homem da tribo X”, e estava verdadeiramente ofendido com a ideia. Sabem o que aconteceu a esse padre? Foi feito bispo... preocupante.

Outro grande problema é que em sociedades tribais, que têm reis e chefes locais, há uma forte pressão por parte dos fiéis de encararem o seu bispo como um chefe tribal. Se o bispo deixar que isso aconteceça, mesmo que não queira, é uma bota muito difícil de descalçar. E a verdade é que um chefe tribal tem como principal função defender a sua tribo, algo muito diferente de um pastor que tem de cuidar de todas as ovelhas, sejam de que cor ou ascendência forem.

Foi uma conversa muito franca e muito elucidativa e aquele homem brilhava com paixão pelo Evangelho. Uma surpresa muito agradável.

Amanhã também promete, com uma conferência sobre a Primavera Árabe.

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