Wednesday, 21 September 2022

Idolatria Escondida (com o rabo de fora)

As palavras têm sempre imagens associadas. O que é que vos vem à cabeça quando pensam na palavra “idolatria?” Charlton Heston a despedaçar um bezerro de ouro com os Dez Mandamentos? Russell Crowe a carregar pequenas figuras de barro na prisão do gladiador? Indiana Jones a substituir uma cabeça em ouro por um saco de areia?

Talvez mais umas coisas, caso tenhamos andado na catequese. Ainda assim, o nosso “deus” é o nosso “objecto de suprema preocupação”, segundo o existencialista protestante Paul Tillich. E sabemos que o dinheiro, o prazer, o sucesso, ou o poder podem transformar-se em deuses quando se tornam uma preocupação maior do que qualquer outra coisa nas nossas vidas.

Duvido que muitos de nós admitiríamos ser idolatras. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, diríamos. “Não há qualquer mal em procurar estes bens, desde que não abandonemos a crença em Deus.” Justificamos as nossas buscas com a desculpa de que temos Deus à mistura.

Mas será que a crença em Deus nos livra da idolatria? Não será antes uma questão de justiça litúrgica? Afinal quem é que merece o nosso louvor?

A religião é uma virtude porque dá a Deus o que é de Deus. Quando nos perguntam a quem devemos “latria” (a adoração suprema), a resposta justa é de que apenas devemos adorar o não-criado, e nunca a criatura.

Mas há algo mais grave – e talvez mais comum – do que prestar culto a uma imagem (eidolon-latria). Trata-se de adorar-nos a nós mesmos: auto-latria. A autolatria é mais secreta e mais grave do que a idolatria porque o falso deus habita em nós. Somos nós.

Muitas são as personalidades da tradição que atestam isto.

A abadessa beneditina Cécile Bruvère escreveu que “A acreditar no apóstolo, a idolatria não está confinada à adoração de falsos deuses. Podemos erguer em nós mesmos muitos ídolos, e cegamente lhes oferecer sacrifícios” (Vida Espiritual e Oração).

Esta doi. Posso excluir-me presunçosamente da idolatria externa dos terríveis pecadores que me rodeiam, mas devo recordar-me que “em todos os momentos da vida existe uma idolatria interior”, como escreve François Fénelon. “Tudo o que amamos fora, amamos unicamente por nós” (Perfeição Cristã).

Tanto a crença em Deus como o amor por Deus devem manifestar-se como obediência a Deus. É por isso que os autores espirituais referem as palavras de Samuel a Saúl, quando disse: “A rebelião é tão culpável quanto a superstição; a desobediência é como o pecado de idolatria” (I Samuel, 15). Um dos mestres do asceticismo, Giovanni Battista Scaramelli S.J., explica o que Samuel queria dizer: “A razão é que pela desobediência colocamos a nossa opinião e a nossa vontade própria acima da vontade de Deus que nos é revelada pela sagrada obediência”.

A idolatria é semelhante à desobediência uma vez que no caso daquela adoramos um ídolo de madeira ou de pedra em vez do único verdadeiro Deus, o único a quem é devido o culto e nesta desviamo-nos da verdadeira regra para seguir uma enganadora, que é a dos nossos próprios juízos e dos ditames do mundo. A falsa adoração e o falso juízo estão relacionados. A adoração correcta e a rectidão também estão ligadas.

A vontade de Deus deve ser atendida liturgicamente, isto é, com adoração.

Esta idolatria escondida (isto é, a autolatria) pode andar alegremente de mão dada com a religiosidade, porque a vontade própria e o amor-próprio disfarçam-se até dentro de actos religiosos e de virtude. O autólatro até pratica a religião para se satisfazer a si mesmo! Finge amar a Deus, mas nunca ao ponto da abnegação própria.

Fénelon descreve desta forma essa situação: “Fingem amá-lo sob, mas desde que isso não diminua o amor-próprio cego que depois se transforma em idolatria e que, em vez de se referir a Deus como o Fim para o qual fomos criados, procura arrastá-lo ao seu próprio nível, usando-o como algo que ajuda e conforta quando a criatura falha.”

O meu professor Aidan Kavanagh costumava definir a liturgia como “fazer o mundo como o mundo deve ser feito”. O oposto disto é a mundanidade, que trata o mundo e as acções no mundo sem referência a Deus.

A mundanidade é um estado antilitúrgico: é latria mal-direccionada. É auto-adoração, a idolatria mais secreta de todas. Por isso é que Frederick William Faber descreve o homem mundano como aquele que vive como se nunca tivesse de “prestar contas de si mesmo a um poder maior” (Criador e Criatura).

Onde é que pretendo chegar?

A descoberta desta idolatria secreta não traz Deus para a praça pública? Não introduz no espaço secular uma preocupação com o sagrado? O crime da idolatria não é cometido apenas quando escolhemos o templo em que vamos prestar culto, é cometido sempre que a vontade própria se sobrepõe à vontade divina.

A autolatria acontece quando elevamos a nossa própria opinião e vontade acima da vontade de Deus. Em relação a quê? Não apenas nas questões religiosas (embora exista aí muita autolatria também), mas nas coisas do mundo.

Como é que podemos ajuizar de forma recta assuntos como política, normas sociais, sexo, género, família, a vida intrauterina, o estranho, o criminoso e a vítima se colocámos a nossa vontade acima da de Deus? São João Eudes diz que “o orgulho leva o pecador a fazer de si mesmo um ídolo, e a colocar-se no lugar de Deus, uma vez que quando estão em causa a sua satisfação, vontade e desejos, prefere-se a si do que a Deus” (Meditações).

Os nossos interesses, satisfação, vontade e desejos estão sempre em causa. O problema espiritual do orgulho mete-se em tudo, não apenas no contexto religioso. A quem vamos prestar culto? Vamos escolher-nos a nós em vez de a Deus?

Esta é uma questão espiritual, mas é colocada a partir do coração do mundo. Por isso, os assuntos externos e sociais não estão totalmente separados do conflito interno, espiritual. A Igreja tem uma ou duas coisas a dizer sobre este último.

E tem toda a alegria em partilhar a sua experiência e sabedoria com todas as sociedades em que se encontra.


David W. Fagerberg é professor emérito de teologia litúrgica na Universidade de Notre Dame. O seu mais recente livro é Liturgical Dogmatics.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 14 de Setembro de 2022)

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