Pe. Paul Scalia |
Deus concedeu ao homem o dom da fala como uma espécie de
prerrogativa divina. Confiou ao homem a autoridade de poder falar em seu lugar.
Deus conduziu-o a todos os animais “para este ver como lhes chamaria; e tudo o
que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome” (Gen. 2,19). Também
havia uma dimensão sacerdotal neste dom da fala. Nas palavras do homem toda a
criação encontraria a voz para louvar o seu criador. De facto, as primeiras
palavras conhecidas de Adão são um hino de graças pela ajudante que lhe foi
dada:
Esta, por fim, é osso dos meus ossos
e carne da minha carne;
Chamar-se-á
mulher,
porque foi
retirada do homem. (Gen. 2,23)
Depois de o homem se revoltar contra o seu criador, a sua
palavra fica ferida e passa a desviar-se facilmente do seu propósito. Logo
depois da queda, Adão usa palavras não para louvar, mas para culpar essa mesma
ajudante culpando, por extensão, o seu Criador: “A mulher que me deste por
companheira, ela me deu da árvore, e comi.” (Gen. 3:12).
No mundo decaído o poder do homem para articular a
verdade e louvar o Criador torna-se também um meio de decepção e manipulação.
Vemo-lo ao longo das Escrituras, desde a desculpa de Caim – “Sou eu guardador
do meu irmão?” (Gen. 4,9) – à insinceridade de Judas: “Salvé, Rabi” (Mt.
26,49). Vemo-lo à nossa volta, na constante distorção das palavras para servir a
ganância e o lucro e vez da verdade e o louvor. O mais triste é que vemo-lo até
em nós, na forma como usamos as nossas palavras para manipular, culpar e
enganar.
Todas as coisas serão restauradas em Cristo, incluindo a
palavra humana. Na Encarnação, a Palavra de Deus redime as nossas palavras. Ao
assumir a nossa natureza humana, Ele assume para si o discurso humano. Redime a
nossa palavra ao torná-la não apenas sua, mas fazendo dela um veículo da Sua
verdade. A fala sempre foi uma coisa sagrada. Mas agora que o próprio Deus
falou como nós falamos, carrega consigo um significado divino.
A Santíssima Virgem Maria, enquanto aurora que anuncia a
vinda do Senhor, saúda a restauração que Ele traz. Ela “entrou na casa de
Zacarias e saudou Isabel” (Lc. 1,39). Não sabemos o que é que ela disse, mas
sabemos que pelas suas palavras João é santificado no seio de Isabel, que lhe
diz: “Pois eis que, ao chegar aos meus ouvidos a voz da tua saudação, a criancinha
saltou de alegria no meu ventre” Lc. 1,44. Em Maria já vemos as palavras
humanas redimidas e tornadas veículo de graça.
Nossa Senhora antecipa-se às instruções de São Paulo,
dadas a todos os seguidores de Cristo: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra
torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos
que a ouvem” (Ef. 4,29). Devemos seguir o seu exemplo, porque aquilo que se
aplica a Nossa Senhora de forma particular, deve-se tornar verdade para nós
também à medida que crescemos na graça. As nossas palavras devem ser também graça,
tanto na forma como são ditas como no efeito que produzem.
Maria pode dirigir palavras de graça a Isabel e levar João
a regozijar, porque antes dirigiu palavras de fé ao Arcanjo Gabriel: “Eis aqui
a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra”, (Lc. 1:38). Esta sua
resposta está em claro contraste com as palavras de dúvida expressas por
Zacarias: “Como saberei isto?” (Lc. 1,18). Ele ficou mudo, o que é
significativo, pois sem fé ficamos sem nada para dizer.
Depois de elogiar a sua saudação, Isabel também reconhece
a fé de Maria: “Bem-aventurada a que creu, pois hão de cumprir-se as coisas que
da parte do Senhor lhe foram ditas” (Lc. 1,45). Maria profere palavras de fé e,
por isso, torna-se portadora da Palavra e de palavras de graça.
Para falar de uma forma que promove a edificação devemos
primeiro acreditar no Construtor. É a fé nele que nos permite proferir palavras
de verdade, esperança e encorajamento. A confiança nele traz força e gentileza às
nossas palavras. Força, porque falamos como filhos do Todo Poderoso. Gentileza,
porque sabemos que esse poder radica na sua verdade e não nas nossas próprias ideias.
Não temos de recorrer à força, nem cair na brusquidão, porque a sua verdade
pode fazer muito com pouco.
Se não confiarmos nas suas palavras e na sua palavra, então
as nossas palavras ficam confinadas aos nossos pensamentos e dependem do nosso
poder. Rapidamente o medo leva-nos ao silêncio ou a insegurança à brusquidão.
Mas acima de tudo Nossa Senhora revela-nos que as
palavras de graça requerem humildade. O orgulho de Adão confundiu o seu falar.
A insistência de Zacarias no seu próprio conhecimento roubou-lhe a voz. Maria é
a serva do Senhor, disposta a ser encoberta pelo Espírito. Não está cheia de
si. O seu auto-esquecimento perfeito revela que há espaço no seu coração e na
sua mente para a palavra de Deus.
E por isso ela tem algo para partilhar. Nós, por outro
lado, não gostamos de ser encobertos. Estamos cheios de nós e deixamos pouco
espaço para que a sua palavra actue em nós, temos pouco para partilhar com os
outros.
Na sua visita a Isabel, as palavras de Maria levaram a
graça a quem a escutou. Nas nossas visitas, sobretudo nesta quadra, peçamos que
a Verdade de Deus e a nossa humildade nos ajudem a fazer o mesmo.
O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia,
do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o
delegado do bispo para o clero.
(Publicado pela primeira vez no domingo, 23 de Dezembro de
2018 em The Catholic Thing)
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