A situação na Síria está
mais complexa que nunca. Aqui pretendo elencar as diferentes partes
interessadas, tanto internamente como externamente, para benefício dos leitores
que estão por fora do assunto.
Internamente:
Sunitas: Os muçulmanos sunitas são a maior percentagem de sírios. Actualmente a
esmagadora maioria dos rebeldes são sunitas, incluindo vários grupos de
militantes que vêm de fora do país para combater a ditadura de Bashar al-Assad.
Contudo, isto não é o mesmo que dizer que todos os sunitas apoiam os rebeldes.
A família Assad estabeleceu uma série de alianças complexas, sobretudo com as
classes mercadoras de sunitas nas principais cidades da Síria. O grão-mufti,
supostamente o líder espiritual dos sunitas na Síria, é um acérrimo apoiante de
Assad. Ainda há sunitas influentes no regime, mas é curioso notar que
praticamente todos os militares e políticos que abandonaram o regime, desde o
início da guerra, são sunitas.
Alauítas: Os alauítas são um ramo do Islão Xiita e na sua quase totalidade apoiam o
regime de Assad que é, ele mesmo, um alauita. Numa região em que a fidelidade à
tribo ou à religião é muito importante, é com naturalidade que a maioria dos
alauitas começou por apoiar Assad, mas há um outro factor muito importante a
ter em conta. É que os alauitas não passam de cerca de 12% da população, apesar
de terem, desde a ascensão da família Assad ao poder, um poder desproporcional,
dominando as Forças Armadas e os aparelhos do Estado. Neste momento existe um
enorme medo, fundamentado, de que a subida ao poder dos sunitas resulte em
vinganças sobre os alauitas. É um ciclo vicioso, quanto mais os alauitas o
temem, mais duramente lutam e mais aumenta a possibilidade de vinganças, como
aliás até já tem acontecido em diversas ocasiões nas zonas controladas pelos
rebeldes.
Cristãos: São o terceiro maior grupo religioso do país, apesar de estarem divididos
em diversas confissões, ortodoxas e católicas. Os cristãos tendem a ser bem
educados e ocidentalizados, contudo na esmagadora maioria não apoiam os
movimentos democráticos que combatem Assad, precisamente porque têm medo de que
no final não seja a democracia que resulte da queda do regime, mas sim um
Estado islamista onde eles se tornem cidadãos de segunda e sejam perseguidos,
como tem acontecido no Egipto e no Iraque. Contudo, apesar de, tendencialmente
apoiarem o regime, os líderes cristãos têm sido firmes em impedir que os seus
fiéis se juntem a milícias pró-regime, apelando sempre a uma solução sem
recurso às armas. Há, como é evidente, cristãos a servir nas forças armadas,
como quaisquer outras religiões.
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Druzos |
Drusos: O quarto grupo religioso na Síria, os drusos são relativamente poucos,
tendem a viver concentrados nas mesmas áreas e, por regra, tendem a ser
cidadãos leais aos países em que vivem (Síria, Líbano e Israel). Neste caso os
drusos têm-se mantido bastante à parte da revolta, não se querendo associar nem
a um lado nem a outro.
Curdos: Os curdos não são um grupo religioso, mas sim étnico, na esmagadora
maioria muçulmanos sunitas. Contudo, os curdos estão mais interessados em
aumentar a sua própria autonomia. Por isso, estão dispostos a lutar contra
qualquer grupo que sintam ser uma ameaça. Combateram ao lado dos rebeldes de
início mas, quando chegaram grupos islamistas que quiseram impôr-lhes a sua
versão do Islão, lutaram contra eles também. Os casos mais recentes de tensão
levaram o curdistão iraquiano a ameaçar intervir para proteger os curdos na
Síria.
Externamente:
Hezbollah: Antes de entrar pelos países, há que ver o Hezbollah, o principal partido
e força armada do Líbano. O Hezbollah é um partido xiita, fortemente apoiado e
armado pelo Irão. As armas iranianas chegam ao Líbano através da Síria, que
fecha os olhos ao tráfego. Por isso o fim do regime de Assad poderia ser
desastroso para o Hezbollah. O partido sempre apoiou Assad mas, mais
recentemente, os seus soldados entraram em força na Síria para combater ao lado
das tropas sírias. Os dirigentes do Hezbollah mandaram também aos militantes do
Hamas, o movimento islamista na Palestina, deixar de apoiar os rebeldes. O
Hamas é sunita mas depende muito do Hezbollah para apoiar a sua luta contra
Israel.
Líbano: O Líbano é o país com maior diversidade de religiões e grupos étnicos. Os
xiitas, como já vimos, apoiam o Assad, mas os sunitas tendem a apoiar os
rebeldes. Isto já levou a conflitos no Líbano e muitos temem que todo o país se
desestabilize e volte a guerra civil dos anos 80. Os cristãos, que formam cerca
de 40% da população, tanto quanto me tem sido possível perceber ao longo destes
dois anos, não sentem grande afinidade pelos seus correligionários na Síria e
guardam ainda grandes ressentimentos pela ocupação do seu país por parte da
Síria durante longos anos.
Irão: O Irão é a grande potência xiita
do mundo islâmico e está constantemente envolvido num braço de ferro com os
países de maioria sunita, para ganhar influência na região. A queda de Saddam
Hussein foi uma bênção para o Irão, pois permitiu à maioria xiita ganhar o
poder naqueles país, mas a queda de Assad seria uma derrota. Por isso o Irão
tem feito tudo para apoiar Assad e tentar manter a Síria na sua esfera de
influência.
A manutenção do regime
também é importante para o Irão conseguir enviar armamento para o Hezbollah, no
Líbano.
Iraque: Durante muitas décadas o Iraque era dominado pelo regime de Saddam
Hussein que priviligiava a minoria sunita (cerca de 40%) e reprimia a maioria
xiita (cerca de 60%). Desde a queda desse regime os xiitas ganharam o poder e o
país tem-se visto mergulhado numa terrível onda de violência entre as duas
comunidades. Essa violência acalmou nos últimos anos, mas a crise na Síria veio
reacender a rivalidade e este ano os níveis de mortandade voltaram aos de 2006.
Do Iraque têm partido
ondas de voluntários para a Síria. Xiitas para combater pelo regime, sunitas
para combater pelos rebeldes. Quanto ao Governo, não tem criado grandes ondas,
talvez para não desestabilizar ainda mais o país, mas tenderá a apoiar Assad. O
Iraque é um país através do qual o Irão faz chegar armas à Síria, e também ao
Hezbollah, através da Síria.
Turquia: Durante anos a Turquia esteve virada para a Europa, na esperança de
conseguir entrar na União Europeia. À medida que essas esperanças arrefecem, e
sobretudo depois do começo da Primavera Árabe, os turcos perceberam que podiam
tornar-se uma das grandes influências no Médio Oriente e no mundo islâmico.
Sendo um país de maioria
sunita, os turcos colocaram-se ao lado da oposição, a quem dão cobertura,
permitindo que as chefias se organizem, treinem e reúnam em território turco.
Arábia Saudita: Tal como a Turquia, a Arábia Saudita também quer ser uma das grandes
influências no Médio Oriente. Os sauditas julgam-se guardiões da ortodoxia
islâmica, são exclusivamente sunitas e odeiam o Irão, que para além de xiita
não é sequer árabe, mas persa. Por isso os sauditas têm todo o interesse em
apoiar os rebeldes para acabar com um regime “herético” e aumentar a esfera de
influência sunita na região. Contudo, os sauditas também temem o aumento da
influência dos grupos mais fanáticos dos rebeldes, pois internamente tem
problemas com islamistas que consideram que o regime saudita é corrupto e foge
à essência do Islão.
Israel: A posição de Israel é, no meu entender, um pouco mais difícil de
explicar. Historicamente Israel tem estado em conflito com a Síria, sobretudo
por causa da região fronteiriça, que Israel ocupou depois da guerra dos seis
dias. Várias vezes os israelitas bombardearam a Síria para destruir o que
consideravam ser o começo de construção de instalações nucleares e de facto
ninguém em Israel morre de amor por Assad.
Mas por outro lado,
imagino que os israelitas também estejam preocupados com o regime que o possa
substituir, pois uma Síria islamista seria uma maior dor de cabeça na fronteira
com Israel do que o regime de Assad que, para além de retórica, raramente
incomodava.
Por outro lado, o fim do
regime poderia acabar com o fornecimento de armas por parte do Irão ao
Hezbollah, enfraquecendo aquela que tem sido a maior espinha no lado de Israel
na última década.
Friamente diria que aos
israelitas interessa sobretudo que o país se mantenha no caos o máximo tempo
possível, pois enquanto aquela guerra continuar a maior parte dos inimigos de
Israel tem mais com que se ocupar do que atacar o estado judaico.
Egipto: A posição do Egipto em relação à Síria alterou-se 180º com a queda do
regime apoiado pela Irmandade Muçulmana. Os islamitas apoiavam os rebeldes, mas
o novo regime militar, que detesta a Irmandade, cortou com todo esse apoio. O
apoio egípcio era importante para a oposição, uma vez que aquele país é uma
espécie de farol para o mundo islâmico sunita. A posição do Egipto
assemelha-se, por isso, ao da Argélia, que apesar de ser sunita, apoia o regime
sírio porque não quer encorajar movimentos semelhantes no seu país.
Rússia: Mais que tudo a Rússia quer mostrar que continua a ser uma grande
potência, com influência a nível mundial. Ao contrário dos americanos, que
apoiaram algumas das ditaduras que depois vieram a criticar, Putin quer mostrar
que é leal às suas alianças, e a Rússia, de facto, é aliada da Síria há muitos
anos. Os russos têm uma base naval na Síria e querem também defender esses
interesses, para além de esta ser mais uma oportunidade para se oporem aos EUA,
ainda por cima, até agora, com considerável sucesso.
Há, contudo, alguns
factores religiosos que entram em jogo também. Sendo a maioria dos cristãos
sírios de igrejas ortodoxas, esta é uma oportunidade para os russos poderem
armar-se em defensores mundiais da ortodoxia, com o argumento de que uma vitória
dos rebeldes seria má para os cristãos.
Por outro lado, os russos
têm muitas dores de cabeça com grupos islamistas nas suas regiões orientais e
quer tudo menos uma vitória islamista na Síria para dar força a esses grupos.
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John Kerry |
EUA:
Por regra, os Estados Unidos têm apoiado sempre os movimentos revolucionários
nestas ditaduras árabes. É por isso natural que o façam novamente na Síria. Mas
apesar disso, o apoio tem sido pouco mais do que da boca para fora e tem havido
enorme relutância em meter tropas no terreno.
Mais recentemente Obama
disse que a utilizaçção de armas químicas seria algo inaceitável, que levaria a
uma intervenção. Em Agosto os EUA e grande parte da comunidade internacional
concluíram que o regime tinha de facto usado armas químicas contra a sua
própria população.
A resposta da Administração
Obama, contudo, tem sido um total fracasso. O Presidente começou por dizer que
era urgente fazer alguma coisa, mas decidiu submeter a proposta de atacar a
Síria ao Senado e depois ao Congresso. Isso é um processo que leva semanas,
portanto logo ali verificava-se a estranha situação de Obama dizer algo do
género: “Vamos atacar, se nos deixarem, talvez, daqui a muito tempo”, dando
oportunidade para Damasco se preparar e bem.
Depois houve a aparente gaffe de John Kerry que, questionado se havia alguma
coisa que Assad pudesse fazer para mudar a opinião do regime, disse,
aparentemente sarcástico, que só se ele entregasse as armas à comunidade
internacional. Os russos aproveitaram para apresentar formalmente essa proposta
e Assad, evidentemente, aceitou, retirando ainda mais legitimidade a um ataque
americano.
Perante isto, Obama foi à
televisão pedir ao Congresso para adiar a votação e dizer que então os Estados
Unidos esperariam para ver se de facto era possível essa outra solução,
entregando de bandeja o iniciativa aos russos.
Há quem diga que, sabendo
que ia perder a votação no congresso, a gaffe de Kerry tenha sido propositada
para abrir uma porta de saída de toda a situação, sem que Obama passasse uma
vergonha interna ou fosse forçado a entrar numa guerra que a que a esmagadora
maioria da população se opõe.